balde branco

LEITE EM NÚMEROS

João Cesar de Resende

Pesquisador da Embrapa Gado de Leite

A covid-19 e os números do leite

No rastro de uma crise que ainda não terminou – e que trouxe mudanças no mercado –, permanece uma lição e um legado positivo para colaborar com a modernização da produção leiteira nacional

Em setembro de 2020 completaram-se seis meses do início do isolamento social por causa da pandemia de covid-19, o evento histórico que, de forma radical e inesperada, mudou a rotina das pessoas e o comportamento dos mercados em todo o Planeta. Este artigo pretende examinar alguns impactos desse acontecimento sobre a cadeia produtiva do leite, o tema de maior interesse dos leitores desta revista.

Para essa análise, foram selecionados 18 indicadores, direta ou indiretamente ligados à produção de leite no Brasil, para verificar como foram afetados pela crise. Esses indicadores (ou “números”) estão listados na primeira coluna da Tabela 1. O período considerado na análise começa sempre em março de 2020. No entanto, cada indicador termina no mês ou data em que já havia os dados disponíveis no momento da redação deste texto. Este detalhe está informado na coluna 5 da Tabela. A análise é feita considerando-se a variação total “ponta a ponta”, ou mudança de valor de cada indicador entre o início e o fim do período considerado. Nesse contexto, a seguir apresenta-se uma breve descrição dos efeitos da pandemia sobre os indicadores selecionados.

A comparação foi feita tomando-se como base os preços internacionais para o leite em pó integral, leilões da Fonterra/Global Dairy Trade (GDT). Os valores referem-se à variação ocorrida entre os preços médios de março e setembro. Nos dois momentos, os preços estiveram um pouco abaixo dos US$ 3.000/tonelada, embora apresentando uma elevação de 4,5% de março para setembro.

Preços dolarizados recebidos pelos produtores de Brasil, Argentina e Uruguai

A comparação refere-se ao período de março a agosto. Em março, os produtores dos três países receberam preços similares pelo leite vendido (US$ 0,29/litro). No entanto, daquele mês até agosto, a trajetória desses preços foi um pouco diferente entre os três países. Na Argentina apresentavam queda 10,3% e aumentos de 3,6% no Uruguai e de 13,8% no Brasil. O leite brasileiro ficou um pouco menos competitivo em relação ao uruguaio e bem menos competitivo na comparação com o argentino.

Preços do leite ao produtor, no mercado spot e no atacado (UHT, muçarela e leite em pó)

As cotações desses produtos sinalizam o grau de harmonia entre a oferta total de matéria-prima (produção de leite das fazendas somada com o volume importado) e a demanda total por lácteos (soma do consumo interno com o volume exportado). Daí a sua importância para toda a cadeia produtiva, já que influenciam diretamente nos preços recebidos pelos produtores e nos preços pagos pelos consumidores na ponta final da cadeia produtiva.
De março até meados de setembro, segundo o Cepea, houve uma elevação da ordem de 60,2% nos preços do leite no mercado spot (leite cru comercializado entre as indústrias), enquanto no mercado atacadista as altas foram de 31,9% no queijo muçarela, de 25,5% no leite UHT e de 8,8% no leite em pó.
Um quadro geral de queda de produção no campo, baixa importação (pelo menos até junho), indústria com estoques baixos do mix de derivados e demanda aquecida pelo auxílio emergencial empurrou os preços da maior parte desses produtos para patamares históricos nunca vistos nas séries disponíveis. O mesmo aconteceu com o preço médio recebido pelo produtor, que apresentou um crescimento inédito de 34,7% entre março e agosto.

Preços do milho e do farelo de soja – Esses dois indicadores foram inclusos na relação pela influência que exercem sobre os custos de produção da atividade. O preço do milho experimentou seguidas quedas até junho, quando a saca de 60 kg chegou a custar R$ 47,76. A partir de julho, no entanto, voltou a subir, chegando a R$ 59,09/saca no fim de setembro. No caso do farelo de soja, as altas foram constantes durante todo o período: o preço da tonelada saiu de R$ 1.601,00 em março para chegar a R$ 2.151,00 no fim de setembro. O aumento acumulado foi de 34,4% desde o início da crise.

Relação de troca – Esse é o indicador da quantidade de leite necessária para comprar uma saca de 60 kg de uma mistura concentrada composta de 70% de milho e 30% de farelo de soja. Na média de março, o produtor precisava vender 47,9 litros de leite para comprar um saco desta mistura. Em agosto essa quantidade era de 41,3 litros, uma queda de 13,9% em favor do produtor de leite. Neste caso, é importante registrar que a menor quantidade de leite necessária para comprar o concentrado foi assegurada especialmente pela valorização dos preços recebidos pelos produtores.

Produção inspecionada – Os dados disponíveis até o momento mostram uma queda de 9,3% na produção de leite inspecionado no segundo trimestre de 2020 em relação ao primeiro trimestre deste mesmo ano. Neste caso, há que se considerar também a sazonalidade normal da produção que se reduz no período de abril a junho, em razão do fim do período chuvoso e da menor disponibilidade e qualidade das pastagens, uma situação que atinge grande parte dos produtores do Sudeste e Centro-Oeste.
No caso específico deste ano, logicamente ocorreu também o aumento dos custos de produção, que desanimou muitos produtores, além de uma estiagem prolongada e atípica, que prejudicou sobremaneira a contribuição da safra procedente da região Sul.

Importações, exportações e disponibilidade interna per capita

Motivada principalmente pela desvalorização do real ante o dólar, de janeiro a junho, a importação de lácteos foi quase 40% menor do que em igual período do ano passado. Baixa importação e menor produção interna elevaram a concorrência entre os laticínios pela matéria-prima, provocando a inédita “alta” dos preços no campo. As importações voltaram a subir em julho e agosto, mês em que o País importou praticamente o dobro do volume de leite (95,5%) que havia importado em março. As exportações, embora com crescimento de 7,1%, pelo baixo volume relativo, pouco interferiram na oferta interna de leite. Por outro lado, a disponibilidade interna per capita até junho tinha caído 10%, mais um reflexo da queda de produção e da baixa importação no período.

Outros indicadores não relacionados

Um possível impacto da pandemia sobre outros indicadores estratégicos da cadeia produtiva somente será conhecido no próximo ano, após a divulgação dos novos números pelo IBGE. Entre eles, o efetivo total de vacas ordenhadas; a produção total de leite; a produtividade animal; a quantidade de produtores excluídos e remanescentes na atividade, e a escala de produção por fazenda. São números que carregam uma importância especial para os agentes da cadeia, pois vão mostrar se a pandemia afetou (e em que dimensão) a evolução tecnológica do setor. No rastro de uma crise que ainda não terminou, permanecem uma lição e um legado positivo para colaborar com a modernização da produção leiteira nacional.

Co-autores: Denis Teixeira da Rocha – analista da Embrapa Gado de Leite; Glauco Rodrigues Carvalho – pesquisador da Embrapa Gado de Leite

Abrir bate-papo
1
Escanear o código
Olá 👋
Podemos ajudá-lo?