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Fani na sala Ossos no Ateliê Casa Bracher, 2021

CIÊNCIA E ARTE

A fazenda experimental que viu

nascer uma artista

Filha de pesquisador, Fani Bracher iniciou sua percepção da vida e das cores onde mais tarde foi fundada a Embrapa Gado de Leite

Rubens Neiva

"Os campos lavrados de Barbacena são, no início, os temas de minha pintura. Talvez estivessem aí os verdes da Zona da Mata, que preencheram o meu olhar de infância.”

A frase que abre esta reportagem é de Fani Bracher, grande nome das artes plásticas brasileira e uma das personagens que descreveremos aqui. Outra personagem é a Fazenda Experimental Água Limpa (que depois viria a se tornar o campo experimental da Embrapa Gado de Leite), onde a artista nasceu. O pai de Fani, botânico e entomologista, filho de portugueses, Vasco Gomes, foi pesquisador na Fazenda Experimental. O vale rodeado por montanhas de verde brilhante, onde a fazenda está inserida, não fica muito distante dos “campos lavrados de Barbacena”. Foi ali o primeiro contato de Fani com luzes e cores, bem antes de as artes plásticas surgirem no seu caminho, num momento da vida (a infância) em que ela, conforme diz, entendendo-se por gente, iniciou o “arquivo da memória”.

A Fazenda Experimental Água Limpa foi a gênese de uma grande tradição em pesquisa agrícola na Zona da Mata. O pai de Fani era um pesquisador. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) estendeu essa tradição, instalando lá, anos mais tarde, a ciência em gado de leite. Ciência e arte… É curioso como essas duas categorias da expressão humana se uniram nos primeiros passos de Fani pelos caminhos bucólicos da fazenda, gestando uma pesquisadora de formas e cores, que viria emergir de fato na juventude, ao se casar com Carlos Bracher, outro grande nome das artes plásticas brasileiras.

Aos nove anos, a necessidade de uma educação formal, que a “Água Limpa” não podia prover (embora seus primeiros anos escolares tenham se dado na escolinha que atendia os filhos dos funcionários da fazenda), fez com que Fani deixasse sua pequena polis (Coronel Pacheco), iniciando um longo percurso cosmopolita: anos de estudo em Juiz de Fora, casamento, vida e estudos na Europa, maturidade e arte. Ao se retirar da fazenda, Fani iniciou sua semeadura. “Semear metáforas”, como disse o professor José Alberto Pinho Neves a respeito da artista.

Retornando ao Brasil, Fani e “Carlinhos” foram morar em Ouro Preto, no quadrilátero ferrífero mineiro. Lá não estavam as montanhas do verde brilhante que marcaram o início do seu “arquivo de memórias”. Foi na dureza do chão vermelho e empoeirado do minério de ferro que a artista encontrou a antítese de suas primeiras lembranças. Durante a apuração desta reportagem, detive-me longamente nas imagens dessa fase da artista, tentando encontrar no vermelho da terra do quadrilátero ferrífero, representado em suas pinturas, algum vestígio da terra batida da outrora Fazenda Água Limpa, por onde Fani caminhava descalça. Não havia… ou pensei que não houvesse. Foi o professor José Alberto quem me revelou: “Terra, senhora dos silêncios”.

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Até onde pude conhecer a extensa obra pictórica de Fani, o “silêncio” é o que mais grita em sua arte. O silêncio dos campos lavrados de Barbacena e dos crânios e ossos que enfeitam porteiras campo afora é o mesmo silêncio da terra vermelha da mineração ou dos quadros de outras fases, como o smoking pendurado no cabide sobre o fundo óxido, esperando calmamente pela cerimônia na qual estreará.

Não sei se a “terra, senhora dos silêncios” à qual José Alberto se refere ao escrever para a coleção “Circuito Atelier”, dedicado à artista, é a mesma “terra” entendida por este jornalista, que lida com ciência e pesquisa agropecuária e se viu na honrosa e difícil missão de escrever sobre a arte de Fani. Infelizmente, não tive oportunidade de entrevistar o professor José Alberto para compreender qual era o seu conceito de terra ao cunhar a frase citada. Mas me satisfiz com dois conceitos, em meio a uma infinidade de outros, que encontrei no dicionário. Terra: “camada superficial do solo onde nascem e crescem os vegetais” ou “local onde uma pessoa nasceu”. Esses dois conceitos nos levam à Água Limpa!

Entre a sede administrativa do hoje chamado Campo Experimental José Henrique Bruschi (antiga sede da Fazenda Experimental Água Limpa) e o conjunto de edificações onde são realizados cursos oferecidos pela Embrapa, há uma pequena floresta cujo nome é Reserva Florestal Vasco Gomes, em homenagem ao pai da artista. Uma estrada de terra batida liga um ponto a outro, margeada pelo resquício de mata atlântica. A vegetação cresce em silêncio.

Esse é um local em que os visitantes da Embrapa Gado de Leite gostam de passear. É fácil imaginar a Fani criança caminhando por ali, em silêncio como os vegetais que crescem da terra, alimentando seu arquivo de memórias com suas primeiras lembranças. Talvez o silêncio que inunda toda a produção artística de Fani jorre da Água Limpa.

Paisagem Rural, 89 x 93 cm, 2000

Carranca, 90 x 60 cm, ost, 2002

Para não se perder do silêncio, Fani criou há 20 anos, na região onde nasceu, o projeto “Casa Verde de Todas as Cores”, onde tem realizado intenso trabalho durante a pandemia, mesmo mantendo sua residência oficial em Ouro Preto. A artista abre seu arquivo de memórias:
“A Casa Verde de Todas as Cores simboliza meu retorno a Piau, terra dos meus antepassados maternos. Mesmo morando na Fazenda Experimental, nunca perdi meu vínculo com Piau, onde fiz a primeira comunhão e coroei na igreja.”

Piau está bem pertinho da antiga Água Limpa do arquivo de memórias de Fani. Em menos de meia hora, ela chega à Reserva Florestal Vasco Gomes. Dia desses, a artista retornou à fazenda para gravar um vídeo comemorativo pelos seus 77 anos. Além de caminhar pela reserva, visitou a antiga casa na qual nasceu. “Todos os dias, quando fecho os olhos para dormir, lembro daquela casa”, diz. Da visita, a constatação de que tudo mudou muito. Só a arte é definitivamente longa. A casa está em ruínas. Como uma arqueóloga da memória, o olhar da artista esmiuça as imagens em busca de algo que tenha sobrevivido ao tempo. Não, nem tudo mudou! Ainda há a terra, algumas mangueiras, um flamboyant e o silêncio.


Nota: para assistir ao vídeo que comemora os 77 anos de Fani Bracher e conhecer a Casa Verde de Todas as Cores, acesse o link: https://youtu.be/eAe59kotlLI

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