balde branco

CRÔNICA

Paulo do Carmo Martins

Chefe-geral da Embrapa Gado de Leite

 Iniciou-se, então, a era do leite como empresa. Isso significa conceber um projeto antes de iniciar a produção, com metas claras e objetivos definidos de rentabilidade”

A história do leite

A trajetória da história do leite brasileiro mostra que ocorreram inovações aos saltos, década a década. Dos anos quarenta, quando o produto passou a ser regulamentado para comercialização, até os anos setenta do século passado, reinou o período extrativista, do tirador de leite com produção voltada para o autoconsumo e com a venda do excedente, como nas demais atividades agrícolas. A partir dos anos oitenta, ocorre um salto na produtividade nas atividades em que o Brasil hoje é campeão, como milho, soja, algodão, suínos e aves. Mas, no leite, isso não ocorreu e a inovação na foi o tabelamento de preços, que veio para reduzir a rentabilidade do produtor em prol do combate à inflação. Isso atrasou a organização do setor em cadeia produtiva e gerou uma reação surpreendente, que foi a criação da tipificação de leite Tipo A, B e C. Uma jabuticaba, que existiu somente no Brasil.

Nos anos noventa, a inovação foi no sentido de buscar eficiência na produção, no transporte e no processamento. O fim do tabelamento e a facilidade maior em importar, resultante da redução da burocracia, e a criação da nova moeda, o Real, mantido sobrevalorizado, forçou os produtores e a indústria a aprenderem a negociar preços entre si, a cortar custos e a aumentar a produtividade, iniciando um processo sem volta, rumo à profissionalização da atividade. Esta foi uma década difícil. O fim do tabelamento mostrou a muitos produtores que é mais difícil ser produtor focado na eficiência da produção que participar de movimentos de pressão para que o Governo resolva todos os problemas via preços. Mas foi um rico momento. Ali começava a redução das importações e o crescimento vertiginoso da produção brasileira, via aumento de produtividade. Também ali surgia a indústria láctea brasileira baseada na eficiência.

Já a virada do milênio trouxe como inovação a busca da qualidade do leite e do pagamento por preço diferenciado, para os produtores que oferecem mais sólidos por litro de leite e uma matéria-prima com maior vida útil, pelos cuidados de higiene. Foi nesse diapasão que surgiu a RBQL – Rede Brasileia de Qualidade do Leite. A RBQL é uma rede de laboratórios credenciada pelo Mapa, que passou a controlar a qualidade do leite no Brasil. No início de modo voluntário e depois por exigência legal, os laticínios passaram a enviar amostras visando verificar a Contagem de Células Somáticas (CCS), Contagem Total de Bactérias (CTB) e a composição centesimal com qualificação de Gordura, Proteína, Lactose, Sólidos Totais e Uréia. Assim, começou o pagamento por qualidade.

Mas foi na década passada que ocorreu o salto quântico em termos de inovação e, desta vez, sem marcos regulatórios. Naquela década, começou a ocorrer a entrada de novos produtores. Sim, é verdade que o setor sempre teve, em todas as décadas, novos entrantes. No caso dos estados do Sul, isso catalisou a mudança de perfil dos produtores a partir dos anos noventa, já que o setor recebeu produtores expulsos da soja e da avicultura e suinocultura, e trouxeram a lógica de produzir alimentos e adotar protocolos de produção. Mas, no restante do Brasil, a tradição sempre foi receber produtores que desejavam conciliar renda e lazer produzindo leite.

Todavia, a novidade da década passada foi o perfil dos novos entrantes, que trouxeram a lógica de investidores no leite. Iniciou-se, então, a era do leite como empresa. Isso significa conceber um projeto antes de iniciar a produção, com metas claras e objetivos definidos de rentabilidade. A questão não foi apenas aumentar a produção, mas mudar a escala da produção. Isso exige conceber instalações projetadas, equipamentos apropriados, produção e armazenagem de alimentos, mão de obra treinada, assistência técnica por assuntos (alimentação, reprodução, sanidade) e incorporar o que desejam o consumidor.

E o que deseja o consumidor? Ora, você é consumidor! O que você busca nos alimentos que consome? A primeira característica é estar ingerindo um alimento saboroso, sim. Mas isso é requisito básico e não diferencial. Também tem de ser saudável. O termo saudabilidade cresce de importância exponencial. A novidade, contudo, é que o consumidor está valorizando cada vez mais características intangíveis. O consumidor deseja produtos que gerem narrativa, que sejam produzidos com propósitos claros. Quer saber quem o produz, como é produzido, se há respeito ao meio ambiente.

O novo consumidor assumiu o protagonismo do processo. Produtores e laticínios já perceberam esta mudança vinda da década passada e fazem mudanças estruturais no modo de produzir e de se relacionar com os fornecedores e compradores. Rastreabilidade em toda a cadeia produtiva, biosseguridade e bem-estar animal estão em alta na produção primária, que está aprendendo a se reinventar. Mas vieram demandas novas, forçando a incorporação de conceitos da economia circular, representados pela busca de insumos alternativos, de desperdício zero, de resíduo zero, com reciclagem plena.

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