balde branco

A maior participação de mulheres nos espaços de análise e decisão é interessante, qualquer que seja sua formação – técnica ou produtora –, pois elas podem agregar experiências e percepções de gestão, representando uma parcela significativa da classe produtora

ENTREVISTA

INDIANARA CRISTINA PIRES

A mulher pode e deve ocupar seu espaço na atividade leiteira

com protagonismo

Indianara Cristina Pires destaca-se no segmento leiteiro como produtora e por sua atuação em prol da pecuária leiteira e do fortalecimento da classe produtora. Seu sonho de infância era ser médica veterinária, mas na juventude se apaixonou por biologia e acabou optando por Ciências Biológicas. Depois de trabalhar com projetos socioambientais e dar aulas no início da carreira, hoje é produtora de leite em Cachoeirinhas, no Paraná, juntamente com o marido, sendo bastante ativa em movimentos em favor da pecuária leiteira e pela maior participação da mulher na atividade.

João Carlos de Faria

Balde Branco - Você é bióloga de formação, mas produtora por vocação. Isso é uma herança de família ou começou por alguma outra razão?

Indianara Cristina Pires – Foi por meio da biologia e da minha atuação socioambiental que me aproximei do campo. Conheci meu esposo em 2010. Ele é técnico em agropecuária e viveu toda sua vida no meio rural, trabalhando na pecuária leiteira. Depois de dois anos, decidi trocar a cidade pelo campo e encarar o desafio de viver e de também trabalhar na pecuária leiteira.

BB – Que atividades você desenvolve no dia a dia da propriedade e como as concilia com suas tarefas domésticas e seu papel de mãe? Como é a sua rotina?

ICP – Minha rotina diária certamente tem muitas semelhanças com a de milhares de mulheres que atuam na pecuária leiteira. Divido meu tempo entre as tarefas da produção, as tarefas domésticas e o cuidado com as crianças. Ninguém disse que seria fácil. É uma rotina desgastante, pois tudo demanda tempo e atenção. Entretanto, sabemos que é possível conciliar tudo, com paciência e organização. Na produção leiteira, sou responsável pela rotina diária de ordenha, pelos cuidados e amamentação dos bezerros e lavagem e higienização dos equipamentos. Os demais serviços ficam sob a responsabilidade do marido. Na sequência, inicio as atividades de organização da casa. Aproveito o restante do tempo para também organizar as anotações e registros e ter um mínimo de controle financeiro.

BB – Como participante ativa de movimentos como o “Construindo Leite Brasil” e “Inconfidência Leiteira”, você acha que as mulheres ainda são vistas apenas como coadjuvantes ou já possuem maior protagonismo quanto à sua influência nas decisões do setor e o seu papel na gestão das propriedades?

ICP – Muitas vezes ouvi dizer que “as mulheres ajudam nas atividades desenvolvidas nas propriedades”. Essa frase ecoa nos colocando sempre em papel secundário no negócio familiar. Ainda são poucas as mulheres que ousam enfrentar a resistência e as dificuldades em se colocar na linha de frente da atividade, das articulações e das tomadas de decisão em prol da classe produtora. Aos poucos os espaços vêm sendo conquistados e as mulheres incentivadas a ampliar sua participação, principalmente em movimentos de classe e associações municipais. Muitas mulheres assumem papéis de liderança e articulação junto aos governos. É motivo de orgulho. Apesar disso, sabemos que muitas permanecem “na sombra”, desempenhando as atividades sem ser reconhecidas. Então, temos ainda muito o que avançar, impulsionando esse espírito de protagonismo, dentro e fora das propriedades.

BB – Por que é importante que as mulheres ampliem sua participação nos Conseleites?

ICP – E por que não ampliar? O número de mulheres dentro desses conselhos é tímido, quase inexistente. A maior participação de mulheres nesses espaços de análise e decisão seria interessante, qualquer que seja sua formação – técnica ou produtora –, pois podem agregar experiências e percepções de gestão, representando uma parcela significativa da classe produtora.

BB – E quanto ao cooperativismo e a articulação de produtores em associações, que importância você atribui a isso?

ICP – É muito importante que os produtores de leite se unam por um interesse em comum, ampliando a articulação e o acesso aos investimentos e às políticas públicas. Há milhares de experiências positivas em outros setores da agropecuária. A grande dificuldade está justamente em se conseguir agregar ideias e ideais entre os produtores. É difícil manter o grupo unido em busca de benefícios para todos. Quando esse obstáculo é superado, o grupo só tem a se fortalecer e crescer.

BB – Por que você acha importante reivindicar a criação de uma secretaria exclusiva para tratar da cadeia do leite dentro do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa)?

ICP – A atividade leiteira está presente em 98% dos municípios do País, empregando e gerando renda em mais de um milhão de propriedades. É uma atividade que permite ser moldada de várias formas, conforme o perfil da família e da propriedade. Por isso, vemos a importância de se constituir esta secretaria exclusiva, composta por uma equipe capacitada de pesquisadores, economistas e representantes do setor produtivo que poderia garantir, dentre tantas coisas, a manutenção ou (ao menos) uma maior estabilidade de preços pagos ao produtor – um dos maiores gargalos da atividade. Além disso, essa secretaria poderia promover o constante incentivo aos produtores e a produção leiteira, bem como o consumo de lácteos pela população. Apesar dos vários esforços esta ideia ainda não avançou. Conseguimos, por ora, a criação da Frente Parlamentar da Pecuária Leiteira (FPPL), com apoio e participação de deputados federais dos vários Estados do País.

BB – Como as redes sociais podem contribuir para a cadeia do leite? Aponte alguns pontos positivos e/ou negativos que tenha percebido nesses últimos anos (sobretudo depois da pandemia)

ICP – O alcance dessa ferramenta é incrível e ilimitada. Uma parcela considerável do setor utiliza as redes sociais para incentivar o consumo de leite, por exemplo. Nos últimos anos, temos nos apropriado dessa ferramenta para fazer nossa defesa e incentivo ao consumo. Com as redes sociais, pudemos mostrar nosso dia a dia para consumidores e a população em geral, trazendo um pouco de conhecimento e informação a respeito de nossa atividade. Nesse sentido, é importante destacar que pudemos contar com o trabalho constante de diversos meios de comunicação, como a revista Balde Branco, que há décadas se dedica a divulgar ao público, produtor ou consumidor, quanto aos meios de produção de leite e as diversas histórias de sucesso Brasil afora, além de diversos conteúdos técnicos atualizados, seguindo as tendências tecnológicas do setor. Algumas outras iniciativas, criadas principalmente durante a pandemia, merecem ser destacadas, sobretudo por combater a desinformação e estimular a população ao consumo de leite. Sabendo usar bem esta ferramenta, não vejo pontos negativos.

Muitas vezes ouvi que ‘as mulheres ajudam nas atividades desenvolvidas nas propriedades’. Essa frase ecoa nos colocando sempre em papel secundário no negócio familiar”

BB – O que precisa mudar para que o produtor (ou produtora familiar) possa ser mais bem remunerado e melhorar sua qualidade de vida proporcionalmente à sua importância dentro da economia?

ICP – Esse é um tópico bastante complexo, pois são muitas variáveis envolvidas. Por parte dos produtores de leite, buscamos agregar o máximo conhecimento atualizado nas técnicas de produção de alimentos, no manejo sanitário e reprodutivo do rebanho. Tudo isso proporciona melhoria constante da propriedade, da gestão, da produção e até mesmo da remuneração. Por outro lado, tal melhoria na remuneração e na qualidade de vida não depende apenas das ações do produtor, mas também de políticas mais justas e estáveis para a precificação. Pois, ao fim do mês, quando chega o momento de remunerar de maneira adequada, nem sempre há um compromisso firme por parte de alguns laticínios. Ao fim, vemos o desânimo do produtor de leite, que nem sempre é remunerado da mesma forma como é cobrado. Quanto à nossa importância dentro da economia, a produção leiteira está presente em 98% dos municípios brasileiros, gerando renda e emprego às populações locais. O produtor de leite consome bens e serviços dentro do município no qual reside. Isso gira a roda da economia local. Difere muito de outras atividades produtivas que exportam a renda obtida para outros centros de consumo, por vezes distantes do local de produção.

BB – As soluções dependem mais deles ou de políticas públicas de incentivo?

ICP – Somos elos de uma corrente longa e complexa. É necessário que todos os envolvidos possam conversar com igualdade de condições, para que o setor volte a crescer e receber incentivos. E, sem dúvida, precisamos de apoio e incentivo por parte dos governos e de parceiros como universidades, instituições de pesquisa e extensão rural. É o conjunto que faz a corrente mais forte.

BB – O que você necessário para que uma pessoa seja qualificada para produzir leite com profissionalismo e estar antenada com o que ocorre dentro e fora da porteira?

ICP – Buscar sempre o conhecimento técnico e também informações sobre o mercado do leite. No meu caso, por exemplo, acredito que nunca me sentirei bem qualificada o suficiente para a produção leiteira. Procuramos desempenhar nossas tarefas com o maior profissionalismo possível sempre atentos e atualizados sobre as informações econômicas, de mercado, climáticas e inovações técnicas e tecnológicas. Talvez jamais consigamos atingir ao máximo de profissionalismo. Seria muita presunção. Entendo que o caminho percorrido e o conhecimento agregado são mais importantes. O estudo não para nunca! Nós não devemos parar!

BB – Qual a importância de o produtor manter sob controle os custos e os índices zootécnicos para obter um bom desempenho econômico da atividade leiteira?

ICP – A saúde econômica e produtiva de uma propriedade leiteira está diretamente ligada à organização e ao controle dos custos de produção e das diversas informações zootécnicas do rebanho. A propriedade que não mantém um mínimo dessas informações certamente estará sujeita a falhas e perdas econômicas. E isso é decisivo para o fortalecimento da atividade e estabilidade econômica, financeira e produtiva, ou seria melhor decretar o seu fim.

BB – Qual é a realidade da pecuária de leite na sua região? Qual o apoio que recebem do Estado e/ou das cooperativas?

ICP – A produção de grãos é um dos carros-chefes na produção em nossa região. Por esta razão, a pecuária leiteira não é algo que possamos chamar de estável ou prioritária. A produção de leite já foi maior, empregando dezenas de famílias. Hoje, vem perdendo espaço devido à forte pressão – inclusive sobre as áreas de produção de leite – para a produção de grãos com seus preços atrativos. E, sozinhos, muitos acabam cedendo e saindo da atividade. Há muitas falhas nessa rede de apoio técnico e político e colaboram para a desistência dos produtores – ausência de políticas públicas, pouco apoio e incentivo do governo local; oscilações fortes de mercado; expressivo aumento dos custos, sobretudo no período de pandemia e mesmo no pós-pandemia; problemas na infraestrutura para o escoamento da produção, dentre outros. O único parceiro que sempre esteve presente é o IDR-PR, com sua equipe técnica local atendendo aos produtores do município.

BB – Como as mulheres dessa região participam desses movimentos em favor do leite?

ICP – A participação das mulheres em minha região reflete a realidade do País – restrita e com poucas dispostas a enfrentar as dificuldades, e conciliar esta função com as tarefas domésticas e maternas. O peso dessas duas últimas sobre nossos ombros é grande. Por isso, muitas acabam deixando de lado sua participação mais ativa na representação da classe produtiva, para se dedicar às tarefas cotidianas da porteira para dentro. O sistema foi construído para que nossa participação fosse limitada. Ainda assim, devemos ampliar a participação das mulheres nestes espaços, colaborando diretamente com os movimentos em favor do leite.

BB – Que mensagem deixaria para as produtoras de leite e mulheres em geral, neste mês de março, quando especialmente as atenções se voltam a elas, para que continuem sendo ouvidas todos os outros dias do ano?

ICP – Sigam buscando todo conhecimento e qualificação possível. Temos o dever de participar ativamente da construção da sociedade que almejamos. Todo espaço pode e deve ser ocupado também por nós, mulheres. Gosto muito de uma estrofe de uma música brasileira que diz que “para quem tem pensamento forte, o impossível é só questão de opinião”. Não podemos permitir que nos imponham limites, seja qual for o espaço que ocupemos ou o trabalho que desenvolvamos. Desta forma, derrubaremos barreiras e conseguiremos construir mais pontes, nos apoiando para a construção da sociedade que queremos – na qual sejamos vistas, de fato, como protagonistas de nossa vivência, do nosso negócio – a produção de leite – e de nossa história.

Abrir bate-papo
1
Escanear o código
Olá 👋
Podemos ajudá-lo?