balde branco

CRÔNICA

Paulo do Carmo Martins

Economista e pesquisador da Embrapa Gado de Leite

 Ao fim dessa década de 1990 o novo desenho do setor está pronto: concentração no varejo (supermercados) e na indústria, com atomização
no setor de produção”

A trilogia do leite: Nasce a nova era (parte 2)

No mês passado, neste espaço, procurei mostrar que os anos 1990 foram derradeiros para a organização do setor. O fim do tabelamento de preços por parte do governo foi o ponto de mutação, porque iniciou a corrida por ganhos de produtividade. E, nos meados daquela década, veio a granelização da coleta, que promoveu uma ruptura definitiva com o modo antigo de pensar. No presente artigo, vamos avançar no entendimento dessa década derradeira.

Até a “descoberta” do “leite de caixinha”, no início dos anos 1990, a produção ocorria majoritariamente até a 500 km do litoral, de Norte a Sul, perto dos centros consumidores. E os laticínios eram cooperativas ou tinham gestão familiar, na maioria. Era considerada uma unidade fabril de porte se processasse 50 mil litros/dia. Portanto, a estrutura de mercado era atomizada na produção, no processamento e no varejo e os agentes eram tomadores de preços.

O surgimento do leite UHT no mercado brasileiro foi tão revolucionário que mudou o hábito do consumidor, até então acostumado a adquirir diariamente pão e leite nas padarias. Sem necessidade de compras diárias, entraram em cena os supermercados. O que se viu a partir daí foi o deslocamento das padarias para um papel cada vez mais coadjuvante no varejo de lácteos, com o consumo de leite fluido “de caixinha” crescendo exponencialmente ano a ano.

O leite UHT permitiu produzir a distâncias longas do local de consumo. Um exemplo? Escrevo este artigo do interior da Bahia e, no café da manhã de hoje, tinha leite de marcas de Goiás e do Paraná. O leite UHT estimulou o pensamento de mercados nacionais e as empresas iniciaram um processo veloz de aquisições de plantas fabris e marcas regionais tradicionais, dando origem a um processo de concentração de empresas no processamento.

Isso foi fatal para muitas cooperativas regionais, que não reagiram adotando medidas de gestão eficiente, não inovaram em processos de produção e comercialização, não lançaram produtos, e não expandiram a capacidade produtiva de suas unidades fabris. As multinacionais passaram a dar prioridade à compra de leite de produtores maiores e criaram o preço diferenciado, reduzindo drástica e rapidamente o número de fornecedores. Um exemplo? A Nestlé captava leite de 39,2 mil produtores em 1996 e caiu para 14,1 mil em 2000.

As cooperativas perderam tempo discutindo se deviam pagar preço diferenciado. O assunto gerou polêmica e disputa jurídica, sendo levado ao Cade, que teve de responder à seguinte pergunta: cooperativa pode adotar preços diferenciados entre os cooperados? A resposta definitiva foi sim! Mas veio somente em 1999.

Ao fim dessa década de 1990 o novo desenho do setor está pronto: concentração no varejo (supermercados) e na indústria, com atomização no setor de produção. O poder de barganha entre os elos começou a mudar, já que somente o elo produção se manteve como tomador de preços.

Um segundo fenômeno relevante foi a criação do Mercosul, em 1991. Inspirado na União Europeia, o Mercosul teve o propósito de expandir os mercados de setores que apresentavam vantagens comparativas. Quando foi idealizado, nos anos 1980, Brasil e Argentina viviam recessão e inflação. A lógica da integração, portanto, foi combater esses dois flagelos e o Brasil ganharia o mercado argentino com sua então vigorosa e diversificada produção industrial. Em troca, os argentinos teriam o mercado consumidor brasileiro para seus produtos agrícolas.

Os negociadores não perceberam a silenciosa transformação do cerrado brasileiro em região produtiva, que estava ocorrendo. Eis que o Brasil deixou sua condição de tradicional importador de alimentos para rapidamente ocupar espaços no cenário mundial. De comprador, o Brasil passou a ser concorrente com os argentinos na produção de grãos. Mas, no leite, ficou o espaço para os argentinos e uruguaios usufruírem do mercado brasileiro. Daí que surgiu a prática do leite como moeda de troca nas negociações comerciais com os nossos vizinhos. A partir da formalização do Mercosul, esses países passaram a fornecedores regulares e privilegiados do mercado brasileiro.

Um terceiro fenômeno que afetou o setor foi o Plano Real. O Brasil vivenciou taxas mensais de inflação de dois dígitos durante os primeiros anos da década de 1990. Isso mesmo: inflação mensal de dois dígitos! Em 1994, a inflação mudou de patamar e foi para mais de 40% ao mês. Com o Plano Real, a inflação caiu substancialmente e explodiu o consumo de lácteos, pela elevação do poder de compra dos salários. Aprendemos que inflação é o pior inimigo do setor.

O iogurte virou o símbolo do novo Brasil e, para fazer frente à nova demanda, cresceram as importações. Em 1995, o Brasil saiu do patamar de 4% do leite consumido, sendo importado, para 19%, mantendo-se nos dois dígitos até no fim da década.

O espaço acabou. Faltou falar do câmbio. Mês que vem, retomamos a narrativa da trajetória do leite brasileiro. Aguardo você aqui.

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