A pecuária leiteira brasileira tem muitas facetas, histórias e lendas, e uma delas contada há décadas diz respeito à inviabilidade da produção de leite na Região Nordeste, de forma profissional, com eficiência e tecnologia, por causa de suas condições climáticas e não apenas como uma atividade de subsistência.
Mas, felizmente, o produtor nordestino vem superando esses mitos, com muita expectativa, humildade e respeito. Mesmo enfrentando muitos desafios, dados recentes da Pesquisa da Pecuária Municipal (PPM/IBGE) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2021, o Nordeste cresceu 12,8% na produção de leite e alcançou a marca 5,5 bilhões de litros. Investimentos e condições climáticas mais favoráveis nos últimos anos fizeram a região aumentar a produção pelo quinto ano seguido.
“Nos últimos dez anos, a pecuária leiteira vem crescendo muito na região e, para os leitores da Balde Branco entenderem, é interessante destacar que o Nordeste é muito amplo e diverso.
São zonas completamente distintas, sobretudo quando se fala em produção de leite em relação ao Sul do Brasil, por exemplo, onde os Estados são homogêneos em relação a clima e solo”, explica o pesquisador Rafael Dantas, da Embrapa Semiárido.
Segundo o pesquisador, grosso modo, na atividade leiteira no Nordeste se poderiam distinguir a Zona da Mata – onde a produção não é muito significativa, por causa de outras culturas e de uma precipitação maior, com solos mais profundos – e o Agreste, transição entre a Zona da Mata e o sertão e entrada do semiárido nordestino, onde estão localizadas as principais bacias leiteiras. “Nessa região, apesar de chover menos do que na Zona da Mata, o produtor encontra uma pluviosidade maior do que no sertão e também existe uma produção de alimento bastante favorável de palma forrageira, silagens de milho e sorgo”, diz Dantas.
Dantas aponta que, nessa região, na última década, houve um “desenvolvimento pujante” em produtividade, na ordem de 15%. “Mais importante do que o volume de leite é o aumento de produtividade, com vacas mais eficientes e mais litros de leite/animal/ano. Isso é decorrente do melhoramento genético e do uso de tecnologias, como a ordenha mecânica, que agora é uma realidade muito forte na região, assim como a estruturação de galpões free stall e compost barn, entre outras práticas”, descreve.
Onde estão as bacias leiteiras? – Três bacias leiteiras de grande destaque estão concentradas no Agreste, nos municípios de Nossa Senhora da Glória (SE), no Alto Sertão; nas regiões de Batalha e Major Isidoro (AL) e em Garanhuns (PE), além de outros que ficam no Ceará e na Bahia.
“Não é à toa que os grandes laticínios estão se concentrando nesses municípios. Em Nossa Senhora da Glória, por exemplo, estão a Betânia/Alvoar, Natulact e Natville, que são laticínios gigantescos, que mandam produtos para o Brasil inteiro, alocados em Sergipe. Por esse motivo, a pecuária leiteira do Nordeste será um grande expoente no Brasil, considerando a quantidade gigantesca de fábricas, indústrias e grandes laticínios que estão sendo instalados na região”, projeta o pesquisador.
Um produtor alagoano símbolo dessa pujança leiteira é Paulo Emílio Rodrigues do Amaral, há 60 anos na atividade, que acompanha a evolução da cadeia produtiva da região e segue investindo em melhorias dos resultados zootécnicos do seu rebanho da raça Girolando.
De acordo com o gestor da propriedade, Rogério Medeiros, o projeto é realizado em três fazendas em Alagoas: a São Luiz, que fica em Monteirópolis; a Lagoa da Jurema, em Major Isidoro, e a Barro Preto, em Jaramataia. “Nossa produção é feita com gado Girolando, nos diversos graus de sangue, e, paralelamente, comercializamos genética de produção, pois a preocupação é ter animais com maior sanidade, longevidade e que caminhem bem”, explica Medeiros, genro de Amaral.
Ele faz todo o acompanhamento da produção de leite e de silagem, compra de insumos, manutenção de máquinas, dentre outras atividades. Amaral, por sua vez, é responsável pelo rebanho, manejo do plantel, acasalamentos e movimentação dos animais entre as fazendas, enquanto a cunhada e seu filho cuidam da gestão financeira da propriedade.
“Desde a minha vinda para cá, em 2008, realizamos uma série de mudanças, principalmente na parte de funcionários, na tentativa de melhorar a mão de obra e formar equipes para manter as fazendas com menos rotatividade. Com isso nós tivemos alguns ganhos consideráveis.”
Também foram feitos investimentos num vagão forrageiro e na pista de alimentação, além de melhorias na parte reprodutiva, com visitas periódicas do veterinário e a contratação de um zootecnista para dar assistência técnica na parte de nutrição. “Tudo isso para trazer mais eficiência no processo produtivo da fazenda”, ressalta Medeiros.
Os resultados – Segundo o gerente, em 2008, quando começaram os trabalhos de modernização na propriedade, eram produzidos cerca de 6 mil litros/leite/dia; hoje a produção é de 14 mil/liltros/dia, com 600 vacas em lactação e média geral de 21 litros/dia por animal, com picos de produção de até 24 mil litros em determinadas épocas do ano. Esse volume de leite é destinado ao laticínio Natville, que realiza com frequência as análises de qualidade do leite da propriedade (ver gráfico na página ao lado).
“Tudo isso é fruto de muito trabalho, contando com uma assistência veterinária que a cada 15 dias visita as fazendas e conjuntamente fazemos pesagens e loteamentos para acompanhar as oscilações do rebanho e, depois, elaborar as dietas de inverno e verão com o nosso zootecnista”, complementa o gestor da fazenda.
Bahia + Nova Zelândia – A Fazenda Leite Verde, de Jaborandi, no sudoeste baiano, é um projeto de verticalização que demonstra bem o estágio atual em termos de tecnificação da bovinocultura leiteira nordestina, mas com pouquinho de sotaque neozelandês.
Como consultor do projeto da fazenda, o professor Adilson Aguiar é o responsável pelos programas de manejo da pastagem, correção e adubação dos solos, formulação dos suplementos minerais e concentrados, treinamento das equipes nessas diferentes áreas, orçamento técnico e financeiro e planejamentos de longo, médio e curto prazo. “Comecei, ainda em 1998, a orientar o projeto mesmo antes da compra da área onde atualmente está o projeto do Grupo Leite Verde, quando fui pela primeira vez à Nova Zelândia e, lá, conheci parte dos neozelandeses, hoje acionistas e diretores da empresa. Desde o início, ficou decidido que o projeto seria de produção de leite a pasto, integrando os conhecimentos das bases dos sistemas de produção brasileiro e neozelandês”, diz Aguiar, também um dos diretores e sócios do Grupo Leite Verde.
Seu conhecimento do sistema neozelandês, no entanto, vinha desde 1994, com estudos à distância, e viagens para a Nova Zelândia nos anos de 1998, 2000, 2007 e 2013. “Parte dos fundadores da Leite Verde também veio algumas vezes para o Brasil, quando os levei para conhecer fazendas que são referência de pecuária de corte e leiteira”, relembra Aguiar, destacando que, além de ser um sistema a pasto, teria que ser em pastagens irrigadas, para que o rebanho fosse alimentado por todo o ano, o máximo possível, com forragem colhida pelos próprios animais sob pastejo. “A partir desta tomada de decisão, começamos a procurar áreas que reunissem as características necessárias para compra e implantação do projeto.”
Entre 2001 e 2002, em um ano, foram prospectadas a compra de fazendas nos Estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás e Bahia, sendo avaliadas quase uma centena de propriedades e percorridos mais de 150 mil quilômetros, até se decidir, em 2002, pela área onde atualmente está o projeto, no município de Jaborandi, sudoeste da Bahia, divisa com Goiás e Minas Gerais. No início, os fundadores da empresa eram cinco neozelandeses e dois brasileiros.
“Na fazenda não tinha nada do que tem atualmente. Tudo foi construído com desafios como a distância dos centros fornecedores de materiais para as obras, estradas em péssimas condições de trafegabilidade – na época eram 50 km de terra, hoje ainda são 38 km –, burocracia para conseguir as licenças ambientais e energia. Outro desafio foi a formação do rebanho, principalmente a compra de animais de rebanhos que tivessem controle de indicadores de produtividade e livres de brucelose e tuberculose”, pontua o consultor.
Inicialmente, a compra dos animais foi realizada nos Estados de Minas Gerais (Girolando e Jersey) e Goiás (Girolando), sendo selecionados e comprados 2 mil animais, depois de avaliar mais de 50 mil. Desses, posteriormente foram descartados aproximadamente 1.000 animais positivos para brucelose e tuberculose, apesar de terem sido negociados com diagnóstico negativo para essas doenças. Isso levou à decisão de não comprar mais nenhum animal a partir de 2006 e logo veio a classificação de livre de brucelose e tuberculose à propriedade.
“Desde o início, adotou-se como base do projeto a produção de sólidos do leite com a máxima eficiência técnica e econômica. O rebanho, composto basicamente pelas raças Girolando e Jersey, foi sendo absorvido pelo sangue do Kiwicross – raça sintética dos cruzamentos de Holandês e Jersey de linhagens selecionadas na Nova Zelândia – para maximizar a produção e a produtividade de sólidos do leite.” Atualmente, uma vaca Kiwicross da fazenda pesa em média 451 kg na lactação e 480 kg quando está seca, no fim da gestação.
“Como o sistema da fazenda é a pasto, o primeiro passo foi a escolha da espécie forrageira, que recaiu sobre o capim-tifton 85, uma vez que em trabalhos de campo que conduzi e acompanhei em fazendas comerciais, desde 1994 – e de pesquisa, desde 1998 – esta foi a forrageira menos estacional, ou seja, a que distribui mais uniformemente a produção de forragem ao longo das estações do ano, principalmente em sistemas de pastagens irrigadas. Ela não produz sementes viáveis, por isso seu estabelecimento foi por via vegetativa, ou seja, com mudas”, descreve Aguiar, que é especialista em forragicultura.
As pastagens são irrigadas por pivô central, sendo atualmente 11 pivôs padrões com 57 ha, totalizando 627 ha, sendo 616 ha de área útil de pastagem (56 ha de área útil por pivô). O manejo de irrigação é acompanhado por medidas diárias do balanço hídrico, com uso de software específico. Anualmente, a irrigação contribui em média com 700 mm de água, que, somados aos 1.226 mm de chuvas, totalizam 1.926 mm para uma produção de forragem que varia entre 42 e 45 toneladas de matéria seca/ha/ano, com dados de medição desde 2006.
O manejo de pastoreio é conduzido com o método de lotação rotacionada, com o uso de cercas elétricas móveis. Para o ajuste da taxa de lotação à capacidade de suporte da pastagem, da suplementação volumosa e concentrada (ração), e das doses de adubação, principalmente a nitrogenada, adotam-se as técnicas indireta (medida da altura do pasto com o uso do prato medidor ascendente) e direta (corte, pesagem e secagem de amostras de forragem).
Este monitoramento é diário nos piquetes onde os animais serão colocados e naqueles de onde foram retirados (técnica direta e indireta), e semanalmente em todos os piquetes de um pivô (técnica indireta, medindo a altura do pasto com o prato medidor ascendente).
“As dietas são balanceadas com base nas composições da forragem da pastagem (forragem in natura e silagem) e dos alimentos que compõem os concentrados (milho e substitutos, farelos de soja e substitutos, núcleos) por meio de análises bromatológicas mensais, e nas exigências dos animais de acordo com a sua idade, número de lactações, DEL, peso corporal, teor de sólidos do leite, volume de leite (litros), meta de ganho de peso (para os animais em crescimento), sempre com cuidado no ajuste de fibras da dieta para não ocorrerem variações e reduções nos teores de sólidos do leite, principalmente o teor de gordura”, destaca Aguiar.
Conforme ele, a propriedade foi comprada no fim de 2002, e em 2003 o rebanho começou com 75 novilhas prenhes e 9 vacas, em uma área de pastagem de 27 ha. No fim de 2022 o rebanho somava 6.679 animais (aumento de 79,5 vezes no rebanho comparado a 2003), em 616 ha de pastagens (aumento de 22,8 vezes na área comparado a 2003).
“A primeira ordenha, a partir de 2004, foi feita com 132 vacas em lactação e produção diária de 964 litros, com produtividade média de 7,3 litros/vaca/dia. A primeira venda de leite foi em janeiro de 2004, com 800 litros de leite/dia. No último trimestre de 2022 o número médio de vacas ordenhadas alcançou 2.265 (aumento de 17,16 vezes em relação a 2004), com volume médio diário de 34.806 litros (aumento de 36,1 vezes em relação a 2004), com produtividade média de 15,4 litros/vaca/dia (aumento de 2,11 vezes comparado com 2004)”, calcula o consultor e sócio da fazenda.
Aliás, Aguiar pontua que, se considerarmos a última década, de 2012 a 2022, a produtividade por vaca aumentou de 11,83 para 15,4 litros/dia (aumento de 30%), volume total de 5,944 milhões de litros para 9,672 milhões de litros/ano (aumento de 63%). “Em 2022 os indicadores médios de qualidade do leite foram os seguintes: 4.2% de gordura, 3,6% de proteína, 356 mil de CCS e 10.3 mil de CBT”, finaliza.
Além da Fazenda Leite Verde, o Grupo Leite Verde é detentor das empresas Leitíssimo e Delicari. A primeira está instalada na sede desde 2010 e produz os leites integral, desnatado, zero lactose semidesnatado, creme de leite e iogurte (natural integral, natural integral zero lactose, natural parcialmente desnatado zero lactose e natural parcialmente desnatado), todos com a marca Leitíssimo. A Delicari teve início em 2012, e atualmente fica em Jundiai (SP), onde produz iogurtes, picolé e sorvete com o Leitíssimo Integral.
No total, em 2022, o recebimento médio diário das indústrias foi de 61 mil litros, com 22 milhões de litros anuais, sendo que 57% são produzidos pela própria Fazenda Leite Verde, e o restante fornecido por dois parceiros neozelandeses, vizinhos à indústria Leitíssimo, com produção a pasto, em bases semelhantes às do sistema da Leite Verde. São parcerias que tiveram início em 2011 quando a fazenda começou a alugar vacas para estes produtores neozelandeses.
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