A pandemia e os problemas econômicos criados nesse período, com várias adversidades para a população, deixaram vários setores descapitalizados e a população sem recursos para adquirir alimentos. Isso, com certeza, interferiu muito no setor leiteiro, que produz um alimento básico e teve queda no consumo que perdura até o momento

ENTREVISTA

Rosana de Oliveira Pithan e Silva

Pesquisadora do Instituto de Economia Agrícola (IEA)

Cabe aos governos agir rapidamente para que os pequenos produtores não deixem a atividade

Rosana de Oliveira Pithan e Silva é pesquisadora científica do Instituto de Economia Agrícola da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (IEA), acompanha o mercado de leite e derivados e já publicou inúmeros artigos sobre temas diversos da cadeia produtiva. É especialista em políticas públicas e certificação de produtos, acompanhou as reuniões da Câmara Setorial do Leite e Derivados do Estado de São Paulo por muitos anos, inclusive como secretária executiva por cinco anos. Participou dos debates para criação de normas para melhorar a qualidade do leite, visando à certificação, e do Comitê Gestor do Plano Mais Leite, Mais Renda na sua implantação pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento.

João Carlos de Faria

Balde Branco –

BB – Em que faixa de produção média diária ocorre a maior redução no número de produtores? É uma questão mais restrita à produção familiar?
Rosana de Oliveira Pithan e Silva – Não há ainda um dimensionamento dessa redução. O próximo Censo Agropecuário poderá nos dar uma visão correta dessa realidade. A questão, ao que se percebe, não ocorre apenas na agricultura familiar, já que os problemas na produção e a iniciativa de comprar propriedades podem afetar indistintamente a qualquer proprietário e pode levar qualquer produtor a optar pela redução dos rebanhos com a venda dos animais e/ou abate para a comercialização da carne, que esteve muito valorizada. No entanto, essa categoria de produtor sofre maior impacto, pois, na maioria das vezes, sua renda depende da venda do leite, o que favorece a necessidade de sair da atividade.

BB – Qual seria a explicação para essa situação? Teria algo a ver também com as dificuldades na sucessão familiar?
RP – Vários fatores ocorreram desde a pandemia, como dificuldades de colocação do produto no mercado, logo de início; a oscilação constante dos preços, com queda acentuada em 2021, que levou o produtor a ter margens pequenas de lucro; a saída do homem do campo, que tem se acentuado; os altos custos de produção comprometidos com a alta dos insumos, principalmente milho e soja; maior competitividade dos nossos parceiros do Mercosul (Argentina e Uruguai); e a queda do consumo. Estes podem ser fatores explicativos dessa redução. Sem esquecer, com certeza, das mudanças climáticas que afetaram severamente a produção no Sul do país por três anos, com La Niña, e já vem trazendo problemas novamente com o excesso de chuvas que está ocorrendo na temporada do El Niño. Mas, com certeza, a sucessão familiar tem sido um dos grandes problemas que afetam diretamente o homem no campo. Isso está relacionado, no caso do leite, à necessidade de trabalho diário, para a ordenha; a falta de conectividade no campo, o que leva muitos jovens para a cidade.

BB – Em termos de estados e regiões poderíamos dizer que o fenômeno ocorre na mesma proporção em todo o país ou há alguma diferenciação?
RP – Não dá para generalizar. Alguns estados tiveram queda na produção, como é o caso de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo, Bahia, Rondônia, mas alguns já apresentam alguma recuperação. Teremos que esperar o Censo Agrícola para poder ter ideia do tamanho desse abandono.

BB – Baseando-se nos seus estudos, a senhora diria que a pecuária de leite no Brasil caminha para a concretização de um sistema profissional, de escala, competitivo e com tecnologias cada vez mais intensivas?
RP – Essa está sendo nossa realidade, como no resto do mundo. No entanto, cada país tem suas características e cabe um trabalho intenso para evitar isso, o que pode ocorrer com maior ação do Estado junto aos pequenos e médios produtores de leite, para que essa profissionalização também os alcance, com investimentos em assistência técnica e extensão rural, que hoje em dia está muito aquém das necessidades, e créditos ampliados para investimentos específicos na propriedade em itens para a melhoria da qualidade e da produtividade.

BB – A redução do rebanho com aumento da produtividade é uma evidência de que essa profissionalização é um fato?
RP – Esse é um dos fatores mais importantes para a profissionalização, mesmo o Brasil ainda tendo uma baixa produtividade. Se tomarmos a Argentina e o Uruguai como exemplo, eles estão acima do Brasil neste ponto. Mas temos que ter cuidado quando se pensa nisso como um fator positivo, pois a maioria dos produtores de leite é de agricultores familiares e não tem acesso às mesmas ferramentas que os maiores, às vezes nem mesmo às mais básicas, que não exigem muitos recursos. Isso, lembramos mais uma vez, deve-se à falta de assistência técnica e extensão rural e linhas de crédito mais específicas às necessidades dos produtores, pois os governos nem sempre têm cumprido suas funções.

BB – Sabemos que a modernização acelerada e as grandes transformações se repetem no Mundo inteiro, mas em que o Brasil se diferencia dos demais países, considerando especificidades, como o clima variado, o sistema de produção predominantemente a pasto e a escala de sobrevivência?
RP – Entendo que a pandemia trouxe problemas generalizados e comuns aos países, mas sempre há características específicas de cada país que interferem diretamente nas atividades econômicas. No caso, a má condução da pandemia e os problemas econômicos que foram criados nesse período, com várias adversidades para a população, deixaram vários setores descapitalizados e a população sem recursos para adquirir alimentos. Isso, com certeza, interferiu muito no setor leiteiro, que produz um alimento básico e teve queda no consumo que perdura até o momento, mas agora em menor dimensão, devido à queda na renda e ao alto desemprego, que levou o consumidor, pela primeira vez, a diminuir seu consumo de leite, fato que só ocorria com iogurtes e queijos, que eram balizadores do mercado. Fora isso, o maior problema que vem ocorrendo tem relação com as mudanças climáticas que afetam e, ao que tudo indica, vão continuar afetando também a produção de leite, levando o produtor a perder muito dinheiro e ficar descapitalizado. Em relação aos sistemas produtivos, temos tido um aumento representativo dos sistemas confinados. Isso requer investimentos e aumento de custos com a compra de maior volume de insumos alimentares, ou seja, ocorre em propriedades com maior escala e redução do rebanho.

 

A concentração na indústria já ocorreu em detrimento de muitos laticínios nacionais. É esse caminho que queremos? Temos espaço para todos produzirem e fechar espaços é andar na contramão das necessidades do país”

 

 

BB – A falta de escala e a precariedade da infraestrutura viária que dificulta a logística na captação do leite dos pequenos produtores também seriam fatores preponderantes para a saída da atividade?
RP – Apesar de isso ser uma realidade, não creio que isso seja um fator que leve ao abandono da atividade.

BB – Em que medida a redução do consumo observada no mercado interno e a concorrência da importação de países mais competitivos são fatores que influenciam na redução do número de produtores brasileiros?
RP – Como citei anteriormente, a redução do consumo é uma realidade, não só pela queda na renda, que dificultou o acesso a esse alimento fundamental na dieta da população, mas também pela concorrência com as bebidas vegetais, que cresceu muito em função do aumento de dietas restritivas, tanto por intolerância como pelo crescimento do veganismo e vegetarianismo, que exclui o consumo de proteína animal da sua dieta.

BB – Esse processo pode levar à inviabilização da nossa cadeia produtiva do leite? Quais seriam as consequências para o mercado?
RP – Não acredito nisso. A economia do país vem se recuperando e logo o leite e seus derivados voltarão a fazer parte da mesa dos brasileiros, como sempre fizeram, porque são produtos considerados saudáveis e saborosos. Com certeza, algum impacto continuará havendo em função das mudanças das dietas e a preocupação com o meio ambiente, o que leva o consumidor a preterir um alimento, mas isso pode ser tratado com estratégias de marketing do setor, investimento de técnicas de redução de emissão de carbono e ações fidedignas de ESG. Temos que lembrar que a pandemia, assim como a economia do país, fizeram um estrago muito grande e isso, aos poucos, deverá ser superado.

BB – A senhora não acha que a saída dos pequenos produtores da atividade pode trazer também riscos sociais, uma vez que, em tese, os mesmos não dispõem de muitas opções para sua sobrevivência?
RP – Com certeza. Esses serão os maiores prejudicados e isso deve ser uma preocupação do governo federal e dos governos estaduais, pois essa mudança trará muitos problemas sociais. Muitos pequenos produtores estão na atividade porque o leite garante uma renda mensal e isso traz tranquilidade. Se saírem da atividade, o que irão fazer? Vão vender suas terras e vão para a cidade? No que irão trabalhar? Quais oportunidades terão?

BB – Quais os caminhos que devem ser seguidos para transformar esse cenário ou ao menos reduzir os seus impactos negativos?
RP – Primeiramente, deve haver a construção de políticas públicas que proponham medidas que revertam essa situação. Mais uma vez, coloco que há que se focar na assistência técnica e extensão rural para que esses produtores consigam aumentar sua produtividade com técnicas simples e utilização de tecnologias acessíveis que resultem na melhora da produtividade e redução de emissão de CO2, assim como treinamentos e ferramentas para melhorar a gestão da propriedade, além de linhas de crédito específicas para acessar tecnologias voltadas à produção de leite que também podem ser pensadas.

BB – Na sua avaliação, como poderia ser dividida a responsabilidade e o que cada elo da cadeia pode fazer para enfrentar da melhor forma possível essa redução do número de produtores?
RP – Nesse caso, acho que é difícil compartilhar a responsabilidade a todos os elos da cadeia. Esse é um modelo que já aconteceu e vem acontecendo, ainda na indústria, inclusive prejudicando os laticínios brasileiros. Temos várias empresas externas que já se instalaram aqui comprando nossos laticínios e, às vezes, até alterando características tradicionais dos produtos. Creio que cabe aos governos tomarem ações, agindo rapidamente para que os pequenos produtores não deixem a atividade e se tornem mais um problema social. Ao mesmo tempo, deve ser evitada a formação de cartéis que aceleraria muito o processo, mas isso realmente será muito difícil de acontecer já que o histórico das concentrações no Brasil tem mostrado que os cartéis não têm sido evitados. A concentração na indústria já ocorreu em detrimento de muitos laticínios nacionais. É esse caminho que queremos? Temos espaço para todos produzirem, e fechar espaços é andar na contramão das necessidades do país. Temos que repensar o país, com a inclusão de todos.

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