balde branco

Mais do que nunca, hoje valem muito as lições do cooperativismo: precisamos estar mais próximos de nossos vizinhos, de nossos companheiros, fortalecendo nossas organizações – cooperativas, sindicatos, associações. Mesmo que tenham problemas, vamos juntos corrigir tais problemas, da melhor maneira possível. Juntos é muito melhor e estaremos mais fortes

ENTREVISTA

Márcio Lopes de Freitas

Cooperativismo

tem uma grande contribuição a dar nestes tempos de mudanças,

Presidente da OCB – Organização das Cooperativas Brasileiras, Márcio Lopes de Freitas é agropecuarista há mais de 30 anos. Natural de Patrocínio Paulista-SP, sua paixão pela agricultura e pelo cooperativismo vem de família. A primeira está concretizada em uma propriedade localizada na região de sua cidade natal, onde cultiva café, produz olerícolas orgânicas e cria gado. A segunda começou em 1994, como dirigente da Cooperativa de Cafeicultores e Agropecuaristas (Cocapec) e da Cooperativa de Crédito Rural (Credicocapec). Depois, dirigiu a Organização das Cooperativas do Estado de São Paulo (Ocesp), entre 1997 e 2001. Hoje, preside a OCB e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop), desde 2001. A presidência da Confederação Nacional das Cooperativas (CNCoop), Freitas assumiu em 2005, com a criação da entidade.

Balde Branco – Qual sua avaliação do cooperativismo no segmento do leite, que já teve um espaço grande no mercado e que ao longo das últimas décadas perdeu protagonismo?

Márcio Lopes de Freitas – Esta é uma resposta de certa complexidade, e precisamos voltar um pouco no tempo para compreender melhor a história. O cooperativismo sempre foi muito importante e necessário no processo de produção de leite no Brasil. Vamos situá-lo aqui a partir da década de 1950-60, quando se iniciaram a captação de leite e a organização do produtor. Ao longo do tempo as cooperativas chegaram a mais de 60% de participação na produção leiteira, até o início dos anos 1990. Elas se organizavam em sistemas centrais em cada estado e no âmbito nacional na Confederação Nacional das Cooperativas de Laticínios. Era um sistema extremamente bem organizado. A partir da década de 1964, com o governo militar, instaurou-se uma disciplina muito forte no comportamento do mercado de leite, por ser um produto escasso e de grande importância social. Como a maior parte do leite consumido era importada, o governo tabelou o preço. Assim, determinava o preço e o comportamento do mercado com base numa tabela. Com isso, esse mercado se equilibrou, o que propiciou o crescimento das cooperativas nesse setor, chegando àquele patamar de mais de 60%.

BB – Mas, anos depois, começou o declínio da participação das cooperativas. Quais as razões dessa perda de mercado?

MLF – Com o passar do tempo, o mercado foi-se abrindo, o governo saindo desse processo de intermediação, e no governo Collor o tabelamento do preço do leite saiu de cena. Configurou-se um mercado de livre concorrência. Ao mesmo tempo que o mercado do leite tinha um potencial imenso de aumento de produção, havia uma grande demanda de consumo – uma população crescente e dependente de um alimento básico como o leite. Então, havia um horizonte ótimo para as empresas de lácteos, que não viam isso antes, devido à tutela do Estado nesse mercado. Aí, começaram chegar as grandes corporações multinacionais da área de lácteos no mercado brasileiro, como Parmalat, Danone e outras que vieram na sequência. Entraram no mercado e foram conquistando espaços, criando também uma forte concorrência às cooperativas leiteiras.

BB – As cooperativas estavam preparadas para enfrentar essa concorrência?

MFL – Não estavam preparadas e isso levou muitas cooperativas a fecharem as portas. Pior do que fechar as portas, para as cooperativas que sobraram restou o que se costuma chamar as “rebarbas de mercado”. Isso porque as grandes empresas chegam e não têm compromisso com os pequenos produtores. Elas têm compromisso em rodar a indústria. Então, buscam comprar o leite de um produtor maior, que tem um custo mais baixo, melhor qualidade da matéria-prima, pois investe mais em tecnologia, em genética e é isso o que interessa a elas. Assim, vão sobrando nas mãos das cooperativas os menores produtores e aqueles mais na ponta da linha.

BB – Mesmo enfrentando essa situação de mercado, várias dessas cooperativas ainda sobrevivem. Como conseguem?

MLF – Sim, e até mesmo já nos perguntamos como é que esse segmento não desapareceu enquanto cooperativa. E a resposta é: só não desapareceu porque é extremamente necessário. Esse pequeno produtor produz leite lá na ponta da linha a 30, 40 quilômetros da cidade, porque não tem outra opção. É do leite que ele tira o plano de saúde da família, o supermercado que faz no fim do mês. Então, ele está empobrecendo com o leite? Provavelmente, sim. Uma boa parte sim. Mas é mais ou menos como andar de bicicleta na areia, se você parar de pedalar, terá que carregá-la nas costas. Ou seja, ele não tem outra opção senão continuar pedalando. Isso foi ocorrendo ao longo dos anos, diminuindo cada vez mais a participação das cooperativas nesse mercado, chegando abaixo de 30%.

BB – Nos últimos anos, elas estão recuperando seu espaço, ganhando mais eficiência e aprimorando sua gestão?

MLF – Nos últimos dez anos vem-se observando uma retomada da força do cooperativismo na cadeia produtiva do leite. Essa força vem se equilibrando no mercado nacional, que aumentou muito a produção. Há também uma concorrência mais acirrada internacional, um mercado mais aberto a todos. Vale assinalar que as cooperativas melhoraram muito a sua gestão, sua governança e seus modelos de inserção no mercado, voltando a participar de uma fatia um pouco superior. Não tenho o número exato, mas deve estar entre 35% e 40% de participação na origem do leite. E melhor que isso, as cooperativas têm um papel fundamental na formação da base do preço. São referência, pois conseguem atuar tanto na parte da produção de seus cooperados, como na industrialização, oferecendo o leite pasteurizado e derivados lácteos ao mercado consumidor. Além disso, fornecem matéria-prima para outros laticínios, que precisam desse leite para fabricar seus produtos. Ou seja, as cooperativas estão participando do jogo do mercado. Um pouco abaixo do que poderia ser sua participação, relativamente ao aumento da produção total brasileira. Acredito que ainda vai crescer muito o movimento das cooperativas no segmento leite.

As cooperativas estão recuperando seu espaço no mercado,
que hoje deve estar entre 35% e 40% de participação
na origem do leite. E melhor que isso, elas têm um papel fundamental na formação da base do preço”

BB – O que elas ainda precisam fazer para conseguirem avançar mais no mercado, que caminho precisariam seguir?

MLF – Falar do caminho que os outros devem seguir é fácil, pois quem vai enfrentar as pedras, os espinhos, os morros é quem vai pegar a estrada. Há, sim, caminhos, mas eles não vão vir de graça, vão ter de ser descobertos. Um dos sinais que aponto é o da profissionalização. Não existe espaço nesse mercado para amadorismo. Então, quando se pensa em resolver os problemas das cooperativas de laticínios, principalmente dos pequenos produtores, será preciso ser muito criativo, inovador, algo que não se restringe só às tecnologias de produção, informática, automação, digitais, etc.. O fundamental é como resolver o problema desse produtor que produz 50, 100 litros de leite por dia e está a 40 km da cidade. Como se viabiliza esse produtor? Muitas inovações já estão surgindo, como os consórcios de produção, fusões e incorporações de cooperativas. E mesmo na base produtora, organização entre produtores para produzir de forma consorciada, que é uma estratégia para reduzir custos e ganhar em competitividade. Tais iniciativas devem se intensificar. É preciso ampliar as oportunidades. Para tanto, são necessárias novas ações, pois mais do mesmo não levará a lugar nenhum. Precisamos remodelar nosso sistema, com muita profissionalização e inovar bastante.

BB – E mais que nunca agora na pandemia e na pós-pandemia as cooperativas têm papel muito importante, não?

MLF – Sem dúvida nenhuma. Acredito que o cooperativismo, principalmente na fase pós- pandemia, em que a origem dos produtos e sua rastreabilidade vão ser uma exigência do mercado, as cooperativas têm a oportunidade de voltar a se firmar nesse espaço do leite.

BB – O mundo vem sendo marcado por muitas mudanças econômicas, políticas e sociais. Nesse contexto qual o papel do cooperativismo?

MLF – Há uma reflexão que precisamos fazer em relação a este momento complexo que vivenciamos: qual é o papel da cooperativa nesse cenário. Em primeiro lugar, vive-se um cenário de grandes transformações no mundo. E isso não foi causado por essa pandemia, pois já vem acontecendo há muito mais tempo. A Humanidade não está satisfeita com este modelo que vem de anos, ela quer coisas diferentes. No cenário político mundial, muitos acontecimentos políticos e sociais demonstram isso. Hoje, não há mais ditador que vá barrar a Internet, o Facebook, o WhatsApp. Com essas tecnologias das redes sociais, as pessoas estão se comunicando com muito mais eficiência, o que permite a elas ter uma visão mais estratégica e global das coisas. Assim, a Humanidade começa a requerer instituições de melhor qualidade, que representem mais as pessoas. Os governos que estão aí, de direita ou de esquerda, não estão conseguindo dar as respostas que a Humanidade precisa. Mesmo as grandes instituições, como as Nações Unidas, não estão conseguindo atender às necessidades das pessoas no mundo, conforme mostram os acontecimentos no cenário global há muitos anos. O que se vê é que as coisas estão desarranjadas. E isso tudo vem acontecendo também no Brasil.

BB – E nesse cenário de transformações, o que o cooperativismo traz de benefícios para a sociedade e, particularmente, para os produtores de leite?

MLF – A pandemia só veio acelerar esses processos, que vão colocar à prova algumas mudanças e inovações possíveis e, mais que possíveis, necessárias. As pessoas estão percebendo que é possível se fazerem muitas mudanças e que ninguém vai se machucar tanto assim. É preciso ver que esta evolução está acontecendo e sabemos que a ferramenta mais correta para atender aos anseios da sociedade, na minha opinião, chama-se Cooperativa. É uma forma de economia compartilhada, algo que está em alta nas economias globais. Há economia compartilhada, mais justa e mais correta do que cooperativismo? É democracia, participação, integridade de processo e transparência. São as respostas que temos hoje dentro do movimento cooperativista que vão nos permitir atender muito da demanda e necessidades da Humanidade. Por isso, estamos percebendo já durante a pandemia uma agregação de cooperativas muito mais forte. E no pós-pandemia não será diferente. É na cooperativa que as pessoas vão buscar confiança, segurança, rastreabilidade de produtos, participação e um modelo capaz de lhes trazer um pouco mais de felicidade. Uma vivência nessa participação que vai mitigar um pouco as maldades do capitalismo selvagem e de outros modelos de regime que há por aí. Creio, com base em toda minha experiência, na capacidade do cooperativismo de dar respostas necessárias nos momentos de crise. Mais uma vez, as cooperativas vão se mostrar capazes de fazer isso.

BB – Que recado você gostaria de deixar para os produtores de leite?

MLF – A primeira mensagem é dizer que também sou produtor de leite, melhor dizendo, sou dono de vacas, ou seja, sou um agricultor que produz capim e alimento para as vacas produzirem leite. É uma satisfação imensa produzir essa proteína tão nobre quanto o leite. Hoje, estamos vivendo um momento muito bom, já que os preços do leite estão historicamente os mais altos dos últimos 40 anos, numa média superior a R$ 2,00 o litro. Nunca vimos isso antes. E é justo. E todo produtor tem consciência e desconfia que essa situação não vai durar, pois o mercado pode mudar de uma hora para outra. Então, o que traz segurança ao produtor é ele se organizar mais, o segredo da melhora é estar junto. Precisamos aprender a usar todos esses recursos da internet para nos comunicarmos, melhorar nossa relação. Mas, passada essa crise, devemos estar mais próximos de nossos vizinhos, de nossos companheiros, fortalecendo nossas organizações – cooperativas, sindicatos, associações –, mesmo que tenham problemas, vamos juntos corrigir esses problemas, da melhor maneira possível. Juntos é muito melhor. E assim podemos não só manter essa paixão de produzir leite cada vez melhor, como também aumentar nossa rentabilidade.

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