Vai crescer muito o consumo baseado em conceitos de saudabilidade, funcionalidade, produto local, minimamente processados, oriundo de comunidades rurais, etc. Além disso, é crescente o foco dos consumidores no bem-estar animal, na sustentabilidade, na segurança do alimento, na rastreabilidade, no leite de baixo carbono. Enfim, é preciso criar essa narrativa para atingir seus nichos

ENTREVISTA

GLAUCO RODRIGUES CARVALHO

Apesar de serem tempos de cautela,

é preciso focar também nas inovações e oportunidades de mercado

Glauco Rodrigues Carvalho, economista com Ph.D. em Economia Agrícola pela Texas A&M University. Atualmente é pesquisador e gestor da área de economia na Embrapa Gado de Leite. Tem desenvolvido trabalhos sobre comportamento de preços do leite e derivados e competitividade da cadeia produtiva do leite. Juntamente com a equipe técnica da Embrapa, está à frente do Centro de Inteligência do Leite. Sempre participa, como palestrante, dos principais eventos de leite no País.

BALDE BRANCO – Neste segundo ano de pandemia, qual a situação da remuneração do produtor de leite: a relação do custo dos insumos versus o valor que recebe com a venda do leite? Essa situação tende a se agravar para o produtor?

Glauco R. Carvalho – O segundo ano começou mais complicado, tanto para o produtor quanto para a indústria. O enfraquecimento do consumo no fim de 2020 e início de 2021 acabou pressionando os preços de leite e derivados. Por outro lado, milho e farelo de soja permaneceram em elevação, encarecendo o custo de alimentação do rebanho e prejudicando a margem do produtor. Olhando adiante, há uma perspectiva de melhora com o início da entressafra, quando os preços de leite sazonalmente sobem. Mas o momento é de cautela. Estamos atravessando um período complicado, não apenas de saúde pública, mas também social e econômico.

BB – O quanto essa defasagem entre o preço do leite e o aumento dos insumos está afetando a margem do produtor (mostre alguns números)?

GRC – No último ano tivemos forte aumento nos custos de produção de leite e no preço do leite recebido pelo produtor. O custo de produção, medido pelo ICPLeite/Embrapa, subiu 29% entre fevereiro do ano passado e fevereiro deste ano. O concentrado subiu 59%. Neste mesmo período o preço do leite ao produtor registrou alta de 40%. Ou seja, a alta no preço do leite foi superior ao aumento no custo. Por outro lado, o que preocupou mais foi que a partir de outubro o leite recuou e os custos continuaram em alta. O indicador de receita menos custo de ração, que atingiu a máxima de R$ 32 em setembro de 2020, recuou para R$ 26 em fevereiro, uma queda de 19%. Ele mostra o que sobra da receita com leite de uma vaca que produz 20 litros de leite por dia, após pagar as despesas com concentrado à base de milho, soja e sal mineral. Portanto, a margem piorou nos últimos seis meses.

BB – A partir dessa situação, o que é recomendável o produtor fazer para equilibrar suas contas (em quais aspectos ele deve focar mais, já que não ele não tem como “mexer” no mercado)?

GRC – O produtor tem sempre que aplicar uma gestão bem profissional na propriedade e isso passa por um refinado controle de todos os setores. Desde avaliar o desempenho de cada animal, a produção de volumoso, a gestão da mão de obra e a compra de insumos. Qualquer redução que ele conseguir no preço dos insumos vai influenciar no seu resultado econômico. Com preços de arroba de boi mais alta, o descarte e a substituição de animais pouco produtivos por animais melhores é outra estratégia. É importante também buscar o máximo de bonificação pela qualidade do leite que vende. Essa bonificação pode ser equivalente ao seu lucro. Enfim, não existe uma recomendação única. É um conjunto de decisões que envolvem a gestão.

BB – No momento, o que resta ao produtor é ajustar sua gestão, seus custos e fatores econômicos dentro da porteira. E o que ele pode fazer fora da porteira para ganhar maior poder de barganha na venda/remuneração do leite?

GRC – Em geral as pessoas focam sempre no curto prazo, o que é normal. É o que está nos afetando naquele momento. Com isso acabamos fazendo o urgente e esquecemos do importante. Existe a máxima do “juntos somos mais fortes” e neste caso é importante o produtor, principalmente os menores, fortalecer o associativismo e o cooperativismo, que são formas de organização que vão lhe dar mais força na compra de insumos, na venda de produtos e na representação política. É importante ter uma boa representação no legislativo, pois dali vão sair as políticas de suporte ao setor. Um outro fator importante são as parcerias. Hoje ninguém faz nada sozinho. O mundo se tornou muito complexo e as coisas estão mudando muito rápido. Mas daí surgem oportunidades. Existem possibilidades de realização de parcerias com laticínios para agregar valor no leite. Parcerias com tradings para montar uma estratégia de compra de insumos como milho e soja, por exemplo. Parcerias com startups para automação de processos na fazenda. E existem possibilidades de verticalização, para adicionar valor ao seu leite. Temos exemplos de grandes produtores que seguiram essa estratégia, mas também temos pequenos produtores que estão tendo sucesso nos produtos artesanais.

São diversas as oportunidades de agregação de valor quando pensamos nos nichos de mercado. Por isso, as empresas e
produtores precisam se alinhar a essas tendências”

BB – No geral, como você vê a relação produtor versus indústria láctea, o que você acha que precisa mudar para evitar que o produtor pague sempre a conta das recorrentes crises?

GRC – Essa relação tem sido historicamente conturbada. Na base deste problema está o preço do leite, que para o produtor é receita, mas para o laticínio é custo. E isso acaba dificultando a relação, já que os objetivos são distintos e a visão é sempre focada no curto prazo, na geração imediata de valor. Isso poderá mudar quando pensarmos mais na agregação de valor ao leite, na rastreabilidade, na narrativa relacionada ao processo de produção. Hoje, para o laticínio, o custo de trocar um produtor por outro é próximo de zero. A partir do momento que começarmos a enxergar todas as etapas de produção como diferenciadas, quando tivermos uma dependência mútua entre os dois, essa relação tende a mudar. E quem vai provocar essa mudança será o consumidor. Ele vai buscar cada vez mais informação sobre o derivado lácteo que consome. Isso quando pensamos em agregação de valor. Commodity é outra história e mesmo assim surgem pressões externas relacionadas ao meio ambiente, à segurança do alimento, ao bem-estar animal, entre outras.

BB – Nesse cenário do mercado interno o quanto as importações têm afetado a situação dos produtores?

GRC – No ano passado, importamos cerca de 5% do nosso consumo. Não foi um volume elevado quando analisamos a média do ano, mas o problema foi que as importações se concentraram no segundo semestre. De setembro a dezembro nós importamos um volume mensal de 180 milhões de litros, o que equivale a 8% a 9% da produção. E isso ocorreu justamente no período em que se iniciava a safra brasileira de leite, com produção crescendo em todas as regiões. Como o preço do leite é uma combinação de oferta e de demanda, esse crescimento da importação e da produção nacional gerou uma pressão de baixa no mercado. E ainda coincidiu com a redução no valor do auxílio emergencial e o enfraquecimento da demanda. Ou seja, todos os fatores baixistas se somando.

BB – Que caminhos você vê para o setor conseguir força para amenizar essa situação das importações?

GRC – Existem pelo menos duas formas, sem intervenções no mercado, de amenizar o impacto das importações. A primeira refere-se à busca por aumento de competitividade e redução de custo, que acabaria inibindo as importações. A segunda, seria um maior crescimento da economia brasileira, absorvendo volumes adicionais de oferta. Neste segundo caso, o impacto das importações seria atenuado. O leite é um produto muito dependente de renda. Veja as últimas duas décadas. De 2000 a 2010, quando a economia brasileira cresceu 3,7% ao ano, nossa produção sob inspeção aumentou 5,6% ao ano. De lá para cá nossa economia se estagnou e a produção de leite cresceu apenas 1,9% ao ano, mesmo com tantos investimentos em modernização das fazendas e sistemas confinados como estamos observando nos últimos anos.

BB – Que cenário você vislumbra para o produtor de leite até o fim de 2021? O que ele deve fazer para sobreviver e ainda ter fôlego para 2022?

GRC – Teremos grandes desafios pela frente. Não só no leite, mas em toda a economia. No caso do leite, começamos o ano com importações de leite recuando e alta nos preços internacionais, o que é bom para o setor. O mercado mundial de commodities está com preços mais altos. Isso tem a ver com a valorização do dólar frente a outras moedas, mas também com a demanda aquecida. Tivemos estímulos fiscais e monetários no mundo todo e isso puxou demanda. No caso do Brasil, o preço do leite ao produtor já está reagindo e deverá ganhar força na entressafra. Mas vejo que é um ano de muita cautela. O custo de produção pode recuar um pouco em meados do ano, dependendo do comportamento do câmbio, mas vai continuar elevado. O produtor de leite precisa ficar atento ao mercado de grãos para buscar oportunidades de compras junto às tradings ou revendas. Por outro lado, nossa economia não vai bem. É aí que mora o perigo. O risco maior daqui para a frente está na demanda, com o desemprego elevado e a situação da pandemia se agravando. Podemos ter um segundo semestre mais complicado. Por isso é importante cautela e uma gestão de custo bem refinada.

BB – Quais as principais tendências e demandas do mercado consumidor e que podem apontar como oportunidades para o produtor agregar valor à matéria-prima?

GRC – Agregação de valor é um grande desafio na cadeia do leite brasileira. No geral, estamos focando mais em commodities. Aí quando a economia vai bem surfamos, quando vai mal tomamos aquele caldo. Estamos indo mais para um modelo norte-americano e menos europeu. O que é perigoso, pois exige baixo custo e fortes ganhos de escala. Mas existem diversas oportunidades de agregação de valor quando pensamos nos nichos de mercado. O mundo hoje é composto de nichos e as empresas e produtores precisam se alinhar a essas tendências. Vai crescer muito o consumo baseado em conceitos de saudabilidade, funcionalidade, produto local, minimamente processados, oriundo de comunidades rurais, etc. Além disso, é crescente o foco dos consumidores no bem-estar animal, na sustentabilidade, na segurança do alimento, na rastreabilidade, no leite de baixo carbono. Enfim, é preciso criar essa narrativa para atingir seus nichos. Mas, neste caso, produtor e indústria precisam estar mais alinhados, precisam contar a mesma história. Será necessário avançar no relacionamento e na comunicação com o consumidor. O cooperativismo/associativismo é a forma mais rápida de criar essa narrativa. Precisamos começar. As bebidas de base vegetal estão sendo mais agressivas neste aspecto.

BB – No contexto do cenário do mercado lácteo mundial, quais as chances para os lácteos brasileiros? O que falta para o Brasil vir a ser um player efetivo na exportação de lácteos?

GRC – Não se consegue virar um exportador estrutural do dia para a noite. É um trabalho de longo prazo. Outras cadeias do agronegócio brasileiro que tiveram sucesso se fundamentaram em dois pilares: escala de produção internacional e baixo custo. Precisamos trabalhar nessas duas frentes para entrar de fato neste mercado. Vejo que estamos avançando, mas a estrada é longa e cheia de curvas. Demanda investimento, inovação, conhecimento. E por exigir elevada eficiência acaba sendo um caminho com modernização e exclusão de produtores e laticínios. Mas sempre existem oportunidades de exportação e, no atual cenário de preço internacional mais alto e de taxa de câmbio desvalorizada, devemos aproveitar.

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