No início de 2022, a Federação da Agricultura do Ceará (Faec) lançou uma meta desafiadora à cadeia leiteira do Estado: dobrar a produção em dez anos, alcançando a marca de 1,6 bilhão de litros por ano. Para isso, estabeleceu como uma das suas principais estratégias a certificação de indústrias e pequenos laticínios irregulares. Eles somam mais de 2,5 mil em todo o Estado, mas apenas 93 estavam regularizados até recentemente. Inicialmente, em parceria com o Sebrae/CE, o foco da Faec é um grupo de cem estabelecimentos, dos quais 27 já estão saindo da clandestinidade.
O investimento ocorre em conjunto com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar/CE) e o Sebrae foi chamado para oferecer consultorias por meio do Sebraetec, bancando 85% dos custos, sobrando ao produtor os 15% restantes, com a garantia de obter o respaldo técnico para instalar a sua agroindústria.
A pecuária leiteira é uma das cadeias produtivas mais importantes do Ceará, propiciando a sobrevivência de mais de 80 mil pessoas. Em 2017, dos dez maiores produtores de leite do Brasil, três eram cearenses, apesar de estarem num território semiárido e de escassez hídrica. “Isso é vocação e aptidão para produzir leite”, afirma o presidente da Faec, Amilcar Silveira.
A possibilidade de atingir 1,6 bilhão de litros, segundo ele, se projeta a partir da constatação de que quase a metade (48%) do leite consumido no Estado vem de fora, forte motivo para acreditar que a certificação é o caminho para a conquista desse mercado, pois há muito espaço para expansão.
Outro caminho, em sua opinião, é aumentar a produtividade do rebanho, que ainda é muito baixa. “Resolvemos melhorar a genética e a alimentação dos animais, pois mesmo com os baixos índices de chuva – no máximo 550 ml por ano em algumas regiões – é possível produzir uma boa silagem nesse período”, diz.
Nesse sentido, para que os produtores possam conhecer e ter acesso a novas tecnologias e melhorar seu desempenho em todos os aspectos, a Faec oferece assistência técnica a 50 grupos, com perspectivas de chegar a cem grupos de assistidos em breve.
“Ainda neste ano também queremos disponibilizar 2 mil prenhezes, principalmente para as regiões do Baixo Jaguaribe e Sertão Central, e o governo do Estado vai disponibilizar 200 tanques de resfriamento, além do trabalho contínuo de regularização dos laticínios”, resume o presidente. Ao governo estadual, segundo ele, foi solicitada a desoneração de toda a cadeia dos produtos lácteos e investimentos na capacitação dos produtores (Veja no quadro).
A pecuária de leite no Ceará já vem registrando aumentos significativos na produção, conseguindo acumular um crescimento de 63% entre os anos 2015 e 2019, passando de 489,3 milhões para o patamar de 797,4 milhões de litros por ano, estando hoje em mais de 800 milhões, segundo dados do IBGE.
O Sebrae, segundo o gestor estadual de agronegócios, Germano Parente Blum, atua na cadeia do leite da região há pelo menos 20 anos, sempre buscando identificar grupos de produtores com algum nível de organização, valorizando sobretudo o associativismo, para que possam receber as instruções da equipe de consultores do órgão.
Nos últimos dois anos foram atendidos cerca de 500 produtores, dos quais a grande maioria com menos de 100 litros/dia. Alguns dos indicadores para a atuação dos consultores são os resultados de lucratividade e faturamento, a redução de custos, o aumento de produtividade e a modernização da atividade, todos com índices de desempenho acima de 12,5% (produtividade) até quase 20% (faturamento).
No caso específico da regularização dos laticínios, a estratégia tem sido igualmente a de encontrar unidades que tenham interesse e condições de passar pelo crivo dos serviços de inspeção, atuando com a ferramenta do Sebraetec, por meio de parceria com o programa Agronordeste. “Temos conseguido que algumas dessas unidades recebam o selo municipal e, em alguns casos, até os selos estadual e nacional”, diz Blum.
Também um convênio com o Codessul, consórcio regional que reúne 14 municípios, vai favorecer a liberação de selos de inspeção por meio do Sisb, dando mais agilidade aos processos, com sistema próprio de inspeção e possibilitando que os produtos dessas unidades fabris possam entrar para o mercado.
Caso de sucesso – Nesse cenário, entre as várias iniciativas que se somam no esforço para o crescimento planejado de aumentar a produção, se apresentam experiências com resultados exitosos como o Programa Milhã + Leite, que é citado por Blum como um “caso de sucesso”, desenvolvido nesse município, reconhecido oficialmente como “a terra do leite”.
Ele fica localizado na região do Sertão Central, considerada a maior e mais importante bacia leiteira do Estado, que inclui também outros municípios, como Quixeramobim, Senador Pompeu e Solonopole, que, juntos, somam cerca de 400 mil litros de leite/dia, segundo dados levantados pela equipe de campo do Sebrae junto às prefeituras.
Desse total, 100 mil são produzidos em Milhã, onde o programa é realizado conjuntamente com a prefeitura, o Sistema Faec/Senar/Sindicato Rural, o Consórcio de Desenvolvimento da Região Sertão Central Sul (Codessul) e o programa Agronordeste, trabalhando de forma articulada com o programa de Assistência Técnica e Gerencial (ATeG) do Senar/CE e outras iniciativas similares.
As diversas ações realizadas no âmbito do programa, envolvendo um grupo de 40 produtores, já resultaram na elevação da produção anual de 1.917.148 de litros no início, em 2017, para 4.667.302 litros em 2022, com a média por vaca passando de 13,1 para 14,9 litros/dia, aumento de 129% na renda mensal dos produtores e faturamento em 2022 de R$ 14,21 milhões (Sebrae).
“A proposta da Faec está muito amparada no processo de interiorização da assistência técnica, que vem ajudando a mudar a realidade do campo”, afirma Cleverson Carlos Vasconcelos de Sousa, articulador do Regional Sertão Central no Sebrae/CE. Segundo ele, o foco é elevar a produtividade, trazendo inovação para o produtor.
Os técnicos também trabalham muito fortemente na orientação para a instalação e o fortalecimento de reservas alimentares, fator fundamental para chegar aos resultados prospectados, considerando a escassez hídrica do semiárido. Mas, segundo Sousa, com pequenos ajustes, já está sendo possível aumentar consideravelmente a produção e a renda com o leite, que, só no caso de Milhã, conseguiu inserir R$ 14 milhões na economia em 2022.
O analista Anderson Lucas Gonçalves Alves, responsável pelos projetos do Agronegócio no Sertão Central, explica que o trabalho em campo começa com um diagnóstico para entender as necessidades e o nível de conhecimento e informação do produtor, para depois propor mudanças visando sempre produtividade, faturamento, novas tecnologias e custos.
“Fomentamos a regularização dos laticínios para aumentar a concorrência e o valor repassado aos produtores por meio do preço, que é um fator que não podemos controlar, uma vez que o leite é uma commodity. Por isso os orientamos a ter custos mais baixos e a otimizar seu trabalho”, explica Alves.
Isso é definido a partir da observação dos números e da avaliação de como, dentro da propriedade, se pode fazer interferências para torná-la eficiente e autossuficiente na produção de alimentos, adaptada às condições climáticas regionais e mantendo seu custo de forma competitiva. Ou como avançar na melhoria genética, profissionalizando-se e aumentando sua lucratividade. Atualmente, segundo Alves, o lucro médio por litro de leite no município é de 22% em relação ao preço.
“Temos produtores trabalhando com inseminação artificial e outros que já avançam para a utilização de embriões, se tornando referência e conseguindo um faturamento extra, com a venda de boa genética”, afirma. Quanto à renda média mensal, passou de uma faixa de R$ 1,5 mil para até R$ 14 mil, num crescimento de mais de 300%.
Outra percepção dos produtores, também observada pelos técnicos, é o reconhecimento da necessidade de investir em assistência técnica, com a contratação, por eles próprios, de profissionais de veterinária, independentemente da consultoria oferecida pelo Sebrae. Igualmente, se tem trabalhado bastante o fortalecimento do associativismo, fazendo com que esses grupos sejam estimulados a se associar de alguma forma.
Exemplo de melhorias – Irlanio Medeiros Pinheiro, 34 anos, proprietário da Fazenda Novo Mundo, em Milhã, é uma boa referência do programa, reconhecido principalmente pelo seu trabalho de melhoramento genético. Ele vem de uma história espelhada no pai, um pequeno produtor que, segundo Pinheiro, não evoluiu no sistema de produção e gestão da propriedade, assim como ocorre com muitos outros pequenos produtores da região.
Após passar por Mato Grosso, onde foi vendedor de insumos agropecuários, retornou à terra natal para dar início à sua própria produção de leite, desistindo dos planos de continuar trabalhando no ramo do comércio. “Decidi pelo campo porque é mais sossegado e eu gosto desse ambiente mais calmo”, afirma. O primeiro passo foi arrendar uma área e comprar o gado – 33 vacas, com produção de 450 litros/dia –, do qual logo teve que se desfazer para comprar sua própria terra, iniciando novamente do zero.
Mas, até se reorganizar, Pinheiro continuou no projeto, pagando a taxa que lhe cabia, mesmo sem produção, por reconhecer sua importância. “Não queria perder a vaga”, conta. Hoje ele produz 900 litros/dia, contabilizando o leite destinado à recria e ao consumo da fazenda.
O pior gargalo na região do Sertão Central, em sua opinião, é ter comida com qualidade. Assim, foi pelas condições climáticas desfavoráveis da região e por outras dificuldades que decidiu, há cerca de dois anos, comprar sua silagem, pela qual paga cerca de R$ 520 a tonelada. “A qualidade é muito melhor e o custo compensa.”
Outra barreira para a ampliar a produção do Estado seria o preço pago ao produtor, hoje entre R$ 2,25 e R$ 2,35 o litro. “Se compararmos com outras regiões do País, estamos muito abaixo, ou seja, nosso produtor não ganha o suficiente para investir. Para reverter essa situação precisamos de mais indústrias, com mais opções de venda, para não ter que se submeter ao preço extra-cota, hoje de R$ 1,60 o litro.”
Quanto à genética, Pinheiro acredita que seu bom desempenho venha do gosto e do estudo sobre o assunto. “Sempre fui muito curioso sobre genética, porque acho que o grande segredo de produzir leite é produzir animais de qualidade”, revela.
Da utilização de sêmen, ele quer agora evoluir para o uso de embriões, com a fertilização in vitro (FIV), mas sua principal dificuldade tem sido encontrar mão de obra especializada. Por isso, juntou-se a um grupo de produtores, a fim de baratear as despesas com a contratação de um veterinário.
Em sua análise, Milhã tem conseguido evoluir e se destacar na pecuária de leite, porque seus produtores são muito mais abertos às novas tecnologias e aos conhecimentos. “Proporcionalmente, somos o município do Estado que mais insemina e investe em genética”, cita.
BB – Os processos de certificação têm avançado? Que esforços têm sido feitos?
Silveira – Uma das formas de ajudar o produtor é ter novas fábricas ou melhorar as que já estão aí e, como ainda não conseguimos atrair grandes investimentos, resolvemos melhorar a vida dos pequenos laticínios, que são mais de 2,5 mil. Não conseguimos fazer todos de uma vez e então resolvemos inicialmente fazer de 100 e já temos 27 sendo trabalhados. Paulatinamente vamos trazê-los à legalidade, porque não queremos que vivam às margens da lei. Também levamos ao governo do Estado a proposta do SIM Mais, para que possamos descentralizar e agilizar esses processos de legalização.
BB – Como as parcerias com o Sebrae e com o Senar podem contribuir na transferência de tecnologia, de modo que os objetivos da Faec sejam alcançados?
Silveira – Esse é um acordo de cooperação, que vai ser um bom exemplo para o Brasil inteiro, porque o Sebrae muitas vezes fazia seus atendimentos para produtores, que também eram atendidos pelo Senar. Então, a partir de uma coordenação da Faec, estamos tentando “casar” esses esforços.
BB – Quanto está sendo investido para o cumprimento do objetivo de dobrar a produção em dez anos?
Silveira – É difícil precisar o valor exato, mas, no caso da nossa assistência técnica, a previsão é de R$ 50 milhões para todas as cadeias; vamos gastar em transferência de embriões mais R$ 2,5 milhões e, com o projeto Inova Ceará, mais R$ 9 milhões. Quanto ao Estado, já conversamos com o novo governo, mas ainda não é possível saber qual o volume de recursos será aportado nesse sentido.
BB – A quem pode apelar o produtor para obter recurso caso queira investir na melhoria de seu sistema produtivo? Existe incentivo do Estado?
Silveira – Na verdade temos aqui o Banco do Nordeste, que é um bom parceiro do produtor rural, tendo 46% de suas operações feitas com o agronegócio e, nesse sentido, estamos nos organizando para atender ao produtor em seus pleitos de financiamento. Estamos buscando também outros parceiros, como o Banco do Brasil e a Caixa Federal, mas o Banco do Nordeste consegue ter um juro mais barato e pode ser um bom parceiro.
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