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CAMILA ALMEIDA: "A gente já recebia muitas visitas, inclusive internacionais, por causa da genética. Com o queijo essas visitas aumentaram em dez vezes e com um público diferente. Virou um 'combo' de negócios dentro da fazenda"

NEGÓCIO LEITE

Estância Silvânia:

Uma história de 59 anos de seleção do Gir Leiteiro e muito mais

Visão profissional, empreendedora e inovadora estão na base dessa tradição que se sustenta em boas práticas, bem-estar animal, qualidade e sustentabilidade

João Carlos de Faria, texto e fotos

Em 2022, a Estância Silvânia, localizada em Caçapava, no Vale do Paraíba (SP), vai completar 60 anos de seleção da raça Gir Leiteiro, da qual se tornou uma das mais importantes referências nacionais e internacionais, com genética exportada para diversos países, inclusive a própria Índia, país de origem da raça.

Para marcar o início das comemorações, o casal Camila Almeida Oliveira e Eduardo Falcão de Carvalho organizou a “Silvânia Week”, que seguirá ocorrendo todos os meses até novembro do ano que vem, com uma série de eventos. A programação começou no dia 6 de novembro, com a Caravana Nação Agro, projeto do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) em parceria com Canal Rural, com transmissão ao vivo pela emissora de TV.

O evento atraiu cerca de 80 produtores, representantes de prefeituras e técnicos, que assistiram a duas palestras sobre tendências e práticas de sustentabilidade e de adequação ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) nas propriedades rurais.

EDUARDO FALCÃO: "Assumi a Estância em 1994, e o objetivo era transformá-la numa referência. Naquela época, algumas vacas se tornaram recordistas de produção, servindo de vitrine para o trabalho de seleção realizado na fazenda."

Entre o ano de 1962, quando foi fundada por José Fernandes de Carvalho, até os dias de hoje, a trajetória da Estância Silvânia é marcada por uma sequência de fatos que atestam, em vários momentos, seu pioneirismo e posicionamento de vanguarda.

A história começou exatamente no mesmo mês e ano em que nascia Eduardo Falcão de Carvalho, que, aos 12 anos, já fazia inseminação artificial em vacas da fazenda. Caçula entre 12 irmãos, foi o único que se interessou em assumir o comando dos negócios da fazenda.

O pai era industrial e, no Ceará, já mexia com leite. Quando veio para o Vale do Paraíba, ele quis continuar e passou a estudar as raças mais viáveis para criação. Acabou optando pelo Gir Leiteiro e buscou plantéis que já fizessem controle leiteiro oficial. “Ele comprou 25 novilhas em Franca, que foram a base do nosso criatório”, conta.

“Dessas novilhas, 17 eram irmãs e logo que se reproduziram meu pai iniciou o controle leiteiro delas, porque isso era fundamental”, relembra Falcão, destacando a importância da pesagem do leite de forma criteriosa, para o acompanhamento da produção e para se ter um processo seletivo com bons resultados. Nos primeiros tempos a grande dificuldade era conseguir touros melhorados. “Muitas vezes havia erros dificultando a evolução genética e a produtividade dos animais.”

Com esse primeiro plantel, ainda na década de 1960, a fazenda participou de várias edições da Exposição Nacional, que era realizada anualmente no Parque da Água Branca, dando início à sua trajetória vitoriosa. “De 1970 até 1976, durante seis anos fomos o melhor expositor.” No total, ao longo dos 60 anos, foram mais de mil premiações.

Na década de 1980, a criação da Associação Brasileira dos Criadores de Gir Leiteiro (ABCGIL) impulsionou um programa de melhoramento no País, em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a partir de 1982. Falcão, que logo se filiou à associação, se envolveu com o programa que, segundo ele, foi fundamental para que o Gir Leiteiro chegasse aos padrões de qualidade atuais.

“Foi o primeiro programa de progênie para animais zebus leiteiros do mundo”, afirma. Isso, segundo ele, fomentou ainda mais a criação, trazendo a adesão de novos criadores e mais espaço para a raça no mercado.

Falcão assumiu a fazenda em 1994, depois de se formar em Medicina Veterinária na Universidade de São Paulo-USP, em 1986, e passou a profissionalizar suas atividades. O objetivo era transformar a fazenda numa referência. Foi naquela época que algumas vacas se tornaram recordistas de produção, servindo de vitrine para o trabalho de seleção realizado na fazenda.

A partir de 1999 as exposições voltaram a ser realizadas e foram importantes para mostrar e divulgar a raça junto ao público, fortalecendo o potencial de exportação de genética do Brasil. Falcão presidiu a ABCGIL por dois mandatos, de 2001 a 2006, e buscou dar ainda mais visibilidade e incremento ao programa de melhoramento.

Hoje a Estância Silvânia trabalha com a venda permanente de animais e prenhezes na propriedade, pelo site e nos eventos que promove, além de contar com a parceria das principais centrais de sêmen do Brasil, disseminando genética de Gir Leiteiro para o Brasil e para outros países das Américas Latina e Central, além de África e Ásia.

O seu plantel é formado por 240 animais, incluindo os touros que estão na central de sêmen. Em lactação são cerca de 60 vacas, com média diária de 16 litros a pasto.

Vacas na sala de espera para serem ordenhadas

Preocupação ambiental – Além de ter uma visão de vanguarda quanto à genética de seu plantel, as práticas ambientais e de sustentabilidade também fazem parte da história da fazenda instalada no local onde está hoje, há cerca dez anos. A área total é de 60 hectares, sendo 33 de pastos e 6 de capineiras, cuja silagem é utilizada como suplementação em períodos de pouca pastagem.

O antigo proprietário não tinha nenhum controle do acesso do gado às nascentes e da produção e uso da água. Foi feito então um levantamento das nascentes da propriedade, que foram cercadas e reflorestadas com espécies da Mata Atlântica. Adotou-se ainda a análise periódica de solo e os pastos foram divididos em piquetes, todos com acesso dos animais à água.

“Foi todo um conceito que desde o início focou no bem-estar animal, na conservação da natureza, sempre agregando novas práticas para se ter mais recursos naturais e menos impactos ambientais, mantendo a qualidade de vida não só dos animais, mas também das pessoas que moram e trabalham aqui”, explica Falcão.

Com isso, a fazenda tornou-se a primeira na América Latina a ter certificação por bem-estar animal. Para obter essa qualificação, vários procedimentos foram adotados, como o fornecimento racional de água e alimentação, a forma de tratamento dos animais, o manejo sanitário e reprodutivo, a condução da ordenha e o manejo dos bezerros. Tudo para que os animais não sofram nenhum tipo de estresse.

“Isso pode ser facilmente constatado na hora da ordenha, quando as vacas continuam ruminando, não defecam e ficam muito bem adaptadas ao serviço ao qual estão sendo submetidas.” Outra referência são os resultados das avaliações de temperamento dos touros, feitas dentro do programa de melhoramento da Embrapa e da ABCGIL, no qual os animais da fazenda sempre se destacam.

A área total é de 60 hectares, sendo 33 de pastos e 6 de capineiras, cuja silagem é utilizada como suplementação em períodos de pouca pastagem

Mudança de rumo – Entre 1999 e 2012, a Estância Silvânia foi eleita 7 vezes melhor criador nacional e 11 vezes melhor criador paulista nas exposições, mas já estava em busca de algo diferente para valorizar a qualidade do leite que produzia.

É aí que entra o leite tipo A2, próprio para o consumo de pessoas alérgicas à Beta Caseína A1. O início se deu a partir dos primeiros contatos com o nutrólogo e cirurgião vascular Wilson Rondó Júnior, especialista em medicina preventiva e de alta performance, que em 2008 trouxe essa novidade para a fazenda.

“Era exatamente o que procurávamos há muito tempo, porque sempre acreditamos que o Gir Leiteiro precisava ter valorizada a qualidade do seu leite, que tem altos índices de sólidos e sabor diferenciado e merecia um nicho de mercado com uma remuneração mais adequada.”

A partir de 2008, a Estância Silvânia iniciou a seleção para animais A2A2, e tornou-se a pioneira na América Latina na produção do leite A2

A oportunidade foi agarrada com as duas mãos e passou a ser objeto de estudo, quando ainda não havia no Brasil nenhum produtor desse tipo de leite, nem laboratórios que fizessem essa análise de qualificação e tampouco havia informação dos touros nos catálogos e programas de melhoramento.

A Estância Silvânia tornou-se então a pioneira na América Latina na produção do leite A2. “Foi um início praticamente no escuro”, relembra Falcão. As parcerias começaram a ser realizadas e diversas entidades se envolveram na pesquisa.

Como havia a possibilidade de se ter um produto final com maior valor agregado, o produtor decidiu mudar o foco dos animais, até então criados para pista, para a produção comercial de leite e venda ao consumidor final, fechando o ciclo de produção.

O manejo foi totalmente mudado, sem uso de hormônios e com a adoção da produção a pasto, com estrutura de piquetes e pastejo rotacionado, em áreas definidas de acordo com o número de animais, além de boas práticas na sala de ordenha – que é mecanizada e com bezerro ao pé –, com cuidados sanitários na pré e pós-ordenha, com as vacas permanecendo em pé após ordenhadas e ficando a maior parte do tempo a pasto.

Após diversas análises verificou-se que o manejo adotado realmente potencializava elementos componentes do leite que respondem pela melhor qualidade nutricional para o ser humano. A possibilidade de agregar valor com a produção de produtos frescos também passou então a fazer parte dos planos”, diz o produtor.

O bem-estar animal é uma realidade na Estância. Isso pode ser constatado na sala de ordenha, quando as vacas continuam ruminando, não defecam e ficam muito bem adaptadas à ordenha

Do leite ao queijo, agregando valor – Foi em 2017 que a fazenda recebeu a visita de Hervé Mons, renomado mestre queijeiro artesanal da França, muito respeitado na Europa, que ficou encantado com a qualidade do leite e recomendou que se trabalhasse com produtos maturados para acentuar esse diferencial e potencializar o consumo e a comercialização desses produtos.

Da produção de queijos frescos, que já era feita e que já havia sido premiada nacionalmente, passou-se a focar nos queijos maturados.

Falcão diz que o que a fazenda buscava havia dez anos era exatamente chegar a um manejo racional e comercialmente viável, que resultasse num produto final de excelência, fazendo jus à visão estabelecida para os negócios, de ser referência mundial na seleção e no melhoramento genético da raça Gir Leiteiro, fato que Falcão considera consolidado. “Isso já se cumpre, mas é mutante. A gente chegar é uma coisa, mas se manter é outra coisa”, ressalta.

 

Queijos com a marca da fazenda – Àquela altura, a zootecnista Camila Almeida Oliveira, esposa de Falcão desde 2008, já atuava na rotina da fazenda e acompanhava todo o processo que viria a dar um novo rumo aos negócios.

Baiana de Vitória da Conquista, onde conviveu na infância com a atividade agropecuária na fazenda da avó, que aos 91anos ainda continua produzindo leite, ela afirma que “praticamente nasceu embaixo de uma vaca de leite”. Esse fato, segundo ela, facilita a conexão com os mesmos interesses e visões de vida do marido, que conheceu numa Expozebu, em Uberaba.

Como o objetivo do leite A2 era proporcionar ao consumidor final o acesso à qualidade do que era produzido na fazenda, ela começou a se qualificar para a produção dos queijos. Tornou-se mestre queijeira e fez especialização na França, para se aperfeiçoar na técnica da maturação.

“O A2 foi um presente pra nós, porque veio fortalecer a ideia de criar um diferencial. Vimos aí a oportunidade de quem não consumia lácteos passar a consumir”, revela. No começo, no entanto, 90% dos médicos nem sabiam sobre as qualidades do leite e as informações tiveram que ser insistentemente levadas a muitos profissionais da área.

Camila fez o estudo de viabilidade de construção de um laticínio, mas, em 2014, quando surgiram os primeiros produtos, esses ainda eram processados por um parceiro, enquanto a queijaria estava sendo construída.

Logo em 2017, no 3º Prêmio Queijo Brasil, a fazenda foi a mais premiada, com seis medalhas, e em 2018 foram dez medalhas. Em setembro passado, na 5° Edição do Concours Mondial du Fromage et des Produits Laitiers (Concurso Mundial dos Queijos e Laticínios), premiação mais importante do mundo, Camila conquistou duas medalhas de ouro e uma de bronze com os queijos e duas de prata pelo seu trabalho de maturadora.

Falcão atribui essas conquistas tanto à qualidade da matéria-prima, quanto à forma de processamento dos queijos. “Para se obter um bom produto final, temos que ter uma boa qualidade da matéria-prima”, destaca.

O queijo da Estância Silvânia hoje é reconhecido, vendido e consumido no Brasil todo, podendo ser comprado pela internet, na própria fazenda ou em lojas de venda de produtos artesanais. “A gente entrou e não saiu mais”, afirma a mestre queijeira.

Touro Teatro da Silvânia (clone), que já exportou material genético inclusive para a Índia

ORGULHOS DO CRIADOR


Dois ícones se destacam na história da Estância Silvânia. A forma carinhosa como Eduardo Falcão se refere a ambos demonstra o quanto são importantes para a fazenda.

Uma é Nata da Silvânia, morta em 2009, vaca que produziu mais de dez touros provados em centrais de inseminação, sendo seguramente a maior avó da pecuária leiteira do Brasil, tendo gerado quatro importantes doadoras da raça: Deusa, Fábula, Janota e Imbaúba, todas excepcionais produtoras de leite.

O outro ícone é o touro Teatro da Silvânia, um dos que mais venderam sêmen e ainda vende, sendo uma referência no mundo. A vaca Marília do Teatro, uma de suas filhas, é a atual recordista mundial de meio-sangue, com produção de mais de 126 kg de leite num só dia. “É um touro que realmente faz história”, afirma Falcão.

O touro original, no entanto, morreu há cerca de oito anos. O que está na fazenda hoje é um clone, o primeiro e único da raça Gir Leiteiro que atua numa central de inseminação, que já exportou material genético, inclusive para a Índia, país de origem do zebu leiteiro. “É um atestado de competência para o Brasil”, diz Falcão.

Vitrine para a fazenda – “Tínhamos muita visibilidade e muito trabalho focado em raça, mas éramos novíssimos em produção de lácteos. As premiações fizeram com que as pessoas da cidade se interessassem mais em saber como o campo trabalha e, quando veem como trabalhamos, se encantam. Essa interação é muito positiva”, afirma.

As visitas, aliás, aumentaram muito, inclusive de moradores da própria cidade de Caçapava, atraídos pela curiosidade, diante da repercussão das premiações.

“A gente já recebia muitas visitas, inclusive internacionais, por causa da genética, mas eram muito pontuais. Com o queijo essas visitas aumentaram em dez vezes e com um público diferente. Virou um ‘combo’ de negócios dentro da fazenda”, brinca Camila. Porcentualmente, os queijos representam hoje cerca de 20% do faturamento da fazenda.

 

Inspiração vale-paraibana – O carro-chefe entre os queijos hoje é o “Primavera Silvânia”, feito de massa prensada e não cozida, que leva óleo de lavanda, maturado com flores comestíveis, que foi medalha de ouro no mundial na França.

O queijo “Taiada”, outro dos premiados no concurso mundial, leva na receita o içá, uma iguaria muito apreciada no Vale do Paraíba, reconhecida até pelo escritor Monteiro Lobato, que o chamou de “caviar vale-paraibano”.

Camila relata que sua inspiração para a receita veio do desejo de surpreender e o queijo foi pensado especificamente para participar e ganhar o concurso.

“Queria algo que causasse impacto e remetesse à nossa região e concluí que tinha de ser de içá, porque não tinha queijo de formiga no Brasil. E a taiada, além de ser um doce tradicional que vem dos tempos dos tropeiros e de ser a forma como os caçapavenses carinhosamente são chamados, também vem de ‘talhar’ ou ‘coalhar’, que é o mesmo processo utilizado no queijo”, conta a mestre queijeira.

Palestras atraíram mais de 80 pessoas ao evento

NAÇÃO AGRO DEBATEU SUSTENTABILIDADE NAS PROPRIEDADES


A abertura da “Silvânia Week”, no dia 6 de novembro, levou para Caçapava a Caravana Nação Agro, uma iniciativa do Senar São Paulo em parceria com o Canal Rural, que percorre municípios do interior de São Paulo, tendo suas edições transmitidas ao vivo pela emissora de TV.

O engenheiro agrônomo Paulo Sérgio Silva Ramos, que veio da Bahia para o evento, explicou que a sigla ESG (Environmental, Social and Governance), tema de sua palestra, está relacionada ao tripé meio ambiente, social e de governança nas propriedades rurais. “É a forma como o produtor lida com essas questões no seu dia a dia.”

Também relatou cases, que demonstram possibilidades que a sustentabilidade precisa ter foco no mercado consumidor com a oferta de produtos diferenciados e “limpos”, que agregam valor e renda para as propriedades.

“É preciso ter qualidade para atender o consumidor dos grandes mercados, cada vez mais exigente, o que já é perceptível nas gôndolas dos supermercados”, disse.

 

Restauração florestal – Wander Bastos, presidente do Sindicato Rural de Cruzeiro, falou, por sua vez, de projetos de adequação ambiental de propriedades rurais ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), desenvolvidos pela entidade, em iniciativas conjuntas com as prefeituras locais e investimentos do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro).

As ações se desenvolvem em quatro bacias hidrográficas, que estão sendo recuperadas com o objetivo de melhorar o abastecimento humano de água. São 15 propriedades, sendo 5 produtoras de leite, com investimento aproximado de R$ 2,7 milhões.

“O Vale do Paraíba está localizado entre os três maiores centros urbanos do Brasil e é uma vitrine. O que precisa é conscientizar e conquistar o produtor para que ele perceba que, quando faz adequação ambiental da propriedade, ele pode ter um ganho sobre isso”, afirmou.

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