O que explicaria o fato de muitas crianças ainda acreditarem que o leite vem da caixinha e qual seria a razão desse distanciamento e do desconhecimento acerca do mundo rural e do leite? De acordo com a médica veterinária Hayla Fernandes, em artigo para o Milkpoint, boa parte da nova geração não sabe que o leite vem da vaca, e isso parece espantoso, mas tem muito a ver com o processo de urbanização do país.
A autora reforça que o que era normal para as gerações nascidas na década de 1970 – que não chega a 20% da população –, como passar as férias na fazenda e ter contato com os animais, já não é a mesma realidade de quase 50% da população, que hoje tem menos de 30 anos e que não viveu nem teve uma ligação profunda com o campo.
Esse quadro tem inspirado iniciativas e projetos espalhados pelo país, que estrategicamente procuram unir diversão e aprendizado para se aproximar das crianças, fortalecendo futuras relações de consumo e estimulando a permanência dos jovens no campo para garantir a sucessão.
Em alusão ao mês das crianças, a Balde Branco mapeou algumas dessas experiências, apurando que provavelmente a mais antiga delas seja o Clube de Bezerras, realizado há mais de 50 anos pela Castrolanda, cooperativa da colônia holandesa, situada em Castro (PR), a “Capital Nacional do Leite”. O concurso, que é direcionado a meninos e meninas entre 6 e 15 anos, ganhou em 2023, uma versão para ir às escolas e levar informações a respeito do mundo do leite.
A etapa final tradicionalmente é realizada durante o Agroleite, numa prova que avalia o desempenho em pista dos participantes e de seus animais, que neste ano incluiu a “Olimpíada do Leite”, fechando a competição entre as escolas com uma gincana promovida num dos pavilhões da feira.
O concurso “Arte na Caixinha”, promovido pelo Sindicato das Indústrias de Laticínios do Rio Grande do Sul (Sindilat), iniciado em 2022, e o lançamento, também no ano passado, do livro ilustrado “O menino Davi e a terneira Bibi: Aprendendo sobre os caminhos do leite”, de autoria da médica veterinária Mara Helena Saalfeld, extensionista rural da Emater/RS-Ascar, são destaques na região Sul.
Já no norte de Minas, a Coopatos, cooperativa localizada no município de Patos de Minas, um dos dez maiores municípios produtores de leite do Brasil, também promove há 16 anos, o seu Clube de Bezerras, com ações destinadas a meninas e meninos, que culminam numa apresentação para avaliação durante a Semana Coopatos, realizada anualmente na cidade.
A mais antiga – Segundo Simony Trevizan Guerra, supervisora técnica de Qualidade do Leite da Cooperativa Castrolanda, o Clube de Bezerras tem mais de cinquenta anos de existência, sempre incentivando a sucessão familiar e a participação das crianças para que “peguem gosto” pela atividade.
Os participantes ficam responsáveis por uma bezerra desde o seu nascimento até o concurso, quando devem levá-la à pista de julgamento e ficar informados sobre tudo o que acontece com ela durante todo este período. “Esse contato com a bezerra vai despertando na criança o gosto pela atividade”, afirma.
Simony conta que tudo começou com antigos cooperados, que sempre participaram da organização do evento, desde a elaboração do regulamento até a execução, feita conjuntamente pela cooperativa e Agroleite, sempre buscando evoluir e com novas propostas para engajar e alcançar mais crianças.
Dessa forma, muitos produtores, que quando crianças ou adolescentes participaram do clubinho, hoje dão suporte ao projeto, reconhecendo sua importância na própria formação e na de seus filhos e até netos. Por isso, o clube exerce um papel ativo na sucessão familiar, pois muitos dos que estão hoje à frente ou trabalhando com os pais na fazenda vêm de gerações que passaram por esse processo de aprendizagem.
“Ao longo do tempo, foram sendo feitas algumas modificações. Antigamente, por exemplo, eram apenas duas categorias: os novatos e aqueles que já tinham participado em anos anteriores, que constituíam a categoria dos experientes, independentemente da idade. Hoje a faixa etária é mais extensa (de 6 a 15 anos) e está dividida em três categorias para que a disputa seja mais equilibrada”.
A etapa final normalmente acontece no Agroleite, mas o trabalho começa em janeiro/fevereiro com as inscrições, que neste ano somaram 50 inicialmente, sendo a maioria oriunda de Castro, mas só 30 permaneceram até a final. Para participar, as bezerras devem ser nascidas entre março e abril para que estejam no tamanho ideal em agosto, ou seja, nem muito grandes, nem muito pequenas.
“Após as inscrições, fazemos um primeiro encontro para explicações e entregamos um caderninho para cada um, que será o diário da bezerra, devendo constar nele toda a história, dados de nascimento, crescimento, alimentação e histórico de vacinas”, explica Simony.
No mesmo caderno, estão os exercícios que varia de grau de dificuldade, dependendo da categoria, mas sempre mesclando atividades lúdicas e de aprendizado, com perguntas voltadas ao dia a dia da fazenda e da bezerra. “O caderninho é entregue antes de a bezerra nascer para que eles acompanhem sua evolução desde o nascimento”, completa Simony. Entre os critérios de avaliação, estão a participação, o preenchimento correto do diário, as atividades na fazenda e a classificação na pista do Agroleite.
Informação nas escolas – Da fazenda e das pistas, o Clube de Bezerras também foi parar nas escolas, realizando um sonho antigo do gerente executivo de Negócios Leite da Castrolanda, Eduardo Ribas. O projeto foi idealizado por ele há alguns anos, mas só em 2023 saiu do papel, envolvendo seis escolas locais públicas e particulares em sua primeira versão.
O objetivo é levar informação aos alunos sobre a pecuária leiteira e a importância do leite para a sociedade. “Tem muita coisa bonita e informações que ficam entre técnicos e produtores, por isso a proposta é levá-las às escolas. Foi uma experiência incrível”, revela Simony.
O primeiro contato com as escolas foi em março deste ano, com a apresentação de material contando a história da imigração dos holandeses e da Castrolanda, além de conter explicações, de forma lúdica e bem ilustrada, sobre o cooperativismo e a rotina de uma fazenda e de como o leite vai parar na caixinha.
“Falamos às crianças sobre alguns mitos e verdades e contamos com a mascote Milka, que faz muito sucesso. Na segunda visita, levamos alguns dos alimentos que as vacas consomem para que eles pudessem colocar a mão e saber sobre a dieta do animal. Explicamos ainda tudo sobre a criação das bezerras e sobre o processo de industrialização.”
A fase final foi a Olimpíada do Leite com perguntas e respostas e o desafio da montagem de uma vaquinha com material reciclável, que depois foram expostas na Trilha do Leite e votadas pelo público do Agroleite, fazendo parte da pontuação final. Os alimentos que antes haviam sido levados às escolas também fizeram parte da dinâmica. Eles também tiveram que calcular “no olho” a quantidade de leite de um galão. A Escola Municipal Relindis Bornmann Capilé foi a vencedora, com a participação de 37 alunos de 5a série.
Trilha do Leite – A Trilha do Leite é outro projeto educativo que acontece durante o Agroleite, realizado em parceria com a gerência Negócios Leite da Castrolanda. Numa tenda aberta ao público são realizadas palestras e ações com o mesmo objetivo de aproximar o público – crianças e demais faixas etárias – da cadeia do leite.
Com o tema “Trilha do Leite: a magia de entrar na caixinha de leite”, as atividades apresentam o passo a passo e todo o trabalho que os produtores realizam nas propriedades para produzir leite de alta qualidade e com isso, fazer com que o público compreenda todo o caminho, desde a ordenha até as prateleiras do supermercado e a mesa do consumidor.
Entusiasmo – A professora Luciana Soares de Meira, diretora da Escola Municipal Relindis Bornmann Capilé, vencedora da Olimpíada do Leite, diz que apesar de uma parte dos alunos manter contato com o meio rural, mesmo porque a escola fica bem próxima à Castrolanda, eles aprenderam bastante e ficaram entusiasmados com o projeto.
“Às vezes, eles não dão a devida importância mesmo sendo uma realidade que vivem no seu dia a dia. A partir desse projeto, no entanto, eles passaram a ver com um olhar diferente e a atenção deles se voltou mais para essa questão”, afirma.
Ela diz que ficou surpresa com o resultado e quer continuar no projeto nos próximos anos. “Faz oito anos que estou na gestão da escola e esse foi o primeiro ano que tivemos esse projeto. Houve muito empenho e dedicação de professores e alunos, que ficaram muito motivados e, apesar do projeto ser voltado a um tema específico, ajudou na interpretação, leitura e aprendizado das crianças”.
Como premiação, a escola vencedora foi contemplada pela Castrolanda com um projetor e um passeio a uma fazenda da região, para que os alunos pudessem observar as tecnologias que são utilizadas na produção de leite. Luciana disse que estaria junto com as crianças para também conhecer e aprender mais. “Vou junto, com certeza”, enfatiza.
Estudante do 7º ano da Escola Evangélica da Comunidade de Castrolanda, Gustavo Salomons (foto), de 11 anos, conquistou, neste ano, o primeiro lugar na categoria Júnior, com a bezerra C.R.A. Armani Nely 2545 TE, nascida em março, que também foi a campeã em pista. Ele é filho de Patrícia e Robert Salomons e irmão de Maísa Salomons, família proprietária da Chácara Recanto Alegre, em Castro, onde sempre acompanha o pai no dia a dia, quando não está na escola.
Salomons conta que, como boa parte dos seus amigos e colegas de escola, mora na área urbana de Castro. Não são raras as vezes que ouve a “estória” de que o leite vem da caixinha. Por isso, acha importante levar o Clube de Bezerras às escolas e as visitas à Trilha do Leite durante o Agroleite, porque levam informação a esse público. “Falo a eles que precisam visitar uma fazenda e, quando explico que o leite vem da vaca, muitos ficam surpresos, mas passam a enxergar a produção de leite de forma diferente. É uma novidade muito grande para eles, pois boa parte realmente nunca viu uma vaca”, afirma.
Quanto ao futuro, Salomons é categórico: pretende ser veterinário e, quando crescer, quer continuar na fazenda, dando sequência ao trabalho da família na produção de leite, um “bom negócio”, segundo ele. “Desde que se tenha uma boa estrutura, bastante comida, manejo e conforto para as vacas.”
Mas por enquanto, seu plano é continuar no Clube de Bezerras até atingir a última faixa de idade permitida, mas depois quer ser um Jovem Expositor, categoria criada neste ano para qualificar jovens cooperados ou filhos e/ou netos de cooperados, que tenham entre 15 e 35 anos e que queiram se apresentar com os animais em exposições.
Há 17 anos, a Cooperativa de Patos de Minas (Coopatos), preocupada com a sucessão familiar e com o objetivo de despertar nas crianças e jovens o gosto pelos animais, envolvendo-os na rotina da fazenda e promovendo sua integração ao sistema cooperativista e na pecuária leiteira, criou também o seu Clube da Bezerra.
Os concorrentes são divididos em duas categorias, Infantil Patinho (crianças entre 1 e 7 anos) e Juvenil Doce de Leite (crianças entre 7 e 14 anos), e são avaliados pelo manejo, condições do alojamento, limpeza, disponibilidade de sombra e alimentação, cuidados na prevenção e tratamento de doenças, vacinação e envolvimento com a bezerra e com o dia a dia da atividade. A prova final acontece com um desfile em pista, quando os jurados analisam também a docilidade da bezerra, a apresentação e a interação da dupla.
“O objetivo é trazer as crianças para dentro da cooperativa para terem um convívio mais efetivo e um vínculo afetivo com a criação de bezerras, pois, quando você envolve a criança, envolve a família toda”, afirma o presidente da Coopatos, José Francelino Dias. Ao longo do ano, a cooperativa também recebe alunos de escolas locais para conhecer o funcionamento da cadeia do leite, desde a fazenda até a industrialização e distribuição.
O cronograma de atividades é semelhante a de outros projetos, começando pela inscrição e depois segue com o acompanhamento por um determinado período da relação da criança com a bezerra, através de visitas periódicas e anotações dos técnicos à propriedade. Neste ano, como premiação, além de medalhas e brindes, os três primeiros colocados de cada categoria receberam R$ 1mil, R$ 750,00 e R$ 450,00 respectivamente.
Dias relata que, em 17 anos de realização, o projeto apresenta bons frutos e conta que, neste ano, o julgamento teve a participação da primeira campeã da disputa do Clube da Bezerra, a jovem Joyce de Melo, convidada a participar do corpo de jurados. “Achei um momento significativo e ela também ficou bastante entusiasmada e emocionada”, afirma o presidente.
No ano passado, o Sindicato das Indústrias de Laticínios do Rio Grande do Sul (Sindilat), juntamente com a Embrapa e algumas prefeituras gaúchas, lançou o Concurso Cultural “Arte na Caixinha” para eleger os melhores desenhos feitos em caixinhas de leite UHT por crianças do Pré II ao 5o ano, alunos de escolas da rede pública de ensino.
Sob o tema “O leite na sua vida”, o concurso considerou a realidade do setor lácteo, que é pouco conhecida pelos consumidores e principalmente pelas crianças, buscando demonstrar de maneira real e lúdica o processo de produção, a importância do produtor, a sanidade e o bem-estar animal, a qualidade do leite e a preservação ambiental.
Já o livro “O Menino Davi e a Terneirinha Bibi: Aprendendo sobre os caminhos do leite”, de autoria da médica veterinária Mara Helena Saalfeld, disponível em PDF no site da Emater/RS-Ascar, apresenta o diálogo entre um menino da cidade, que não sabe que o leite é produzido pelas vacas, e uma terneirinha – forma como os gaúchos denominam as novilhas leiteiras – que desconhece o destino do seu leite.
A extensionista conta que, ao receber uma excursão de crianças em uma instituição estadual de ensino público voltada ao campo, situada em Canguçu (RS), serviu alguns quitutes e disse aos visitantes que ali tudo era feito com leite de vaca. “Elas fizeram uma cara de quem não gostou muito e ao serem indagadas, disseram que só tomavam leite de caixinha. Assim surgiu a ideia do livro”, relata.
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