A grande missão do CBQL é difundir práticas corretas de produção sustentável de leite e derivados seguros, pautadas em garantia de saúde animal, respeito ao bem-estar animal e ao meio ambiente. O objetivo é integrar produtores, funcionários, técnicos e indústrias na agenda atual de que é preciso garantir a produção de alimentos seguros e de forma sustentável

ENTREVISTA

Vagner Miranda Portes

Falta um programa nacional de controle da mastite

em prol da qualidade do leite

O diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação da Epagri, Vagner Miranda Portes, é o novo presidente do Conselho Brasileiro da Qualidade do Leite (CBQL) eleito para o mandato 2023/2024. Portes é catarinense e tem a essência do cooperativismo e da produção de leite enraizadas na sua história de vida. Além disso, o dirigente do CBQL possui vasta bagagem técnica para contribuir de forma efetiva para a melhoria da matéria-prima produzida em todos os cantos do Brasil

Erick Henrique

Balde Branco – Fale sobre sua trajetória no leite até chegar à presidência do CBQL.

Vagner Portes – Neto de um dos precursores do cooperativismo, catarinense e filho de produtor, cresci em uma pequena propriedade leiteira em Xanxerê, no oeste de Santa Catarina. Cursei Medicina Veterinária no CAV/Udesc Lages (SC), e, neste percurso, tive a honra de ter como orientadores os professores André Thaler Neto (genética e bovinocultura de leite), Aloísio Marcondes César (doenças infectocontagiosas) e Adil Knackfuss Vaz (imunologia de glândula mamária), onde ampliei meu interesse pela bovinocultura leiteira. Em 2004, a qualidade do leite começava a ser discutida com mais ênfase, pois em 2005 passaria a vigorar a IN 51. Busquei estágio final de curso junto ao Laboratório de Qualidade do Leite (LQL), da Embrapa Gado de Leite. Aí, iniciei minha trajetória junto ao CBQL, participando do primeiro Congresso Brasileiro de Qualidade do Leite em Passo Fundo (RS), do qual participei em oito das nove edições, quatro delas como membro da comissão organizadora. No CAV/Udesc fiz mestrado em Ciências Veterinárias (2005-2006), na área de sanidade animal e imunologia de glândula mamária. Em 2009, fui contratado pela Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), para compor o quadro de pesquisadores, junto ao Centro de Pesquisa para Agricultura familiar – Epagri/Cepaf em Chapecó (SC). Após o doutorado em Biotecnologia e Biociência, fui convidado a assumir a Diretoria de Ciência, Tecnologia e Inovação da Epagri, coordenando a pesquisa agropecuária realizada pela empresa em SC. Junto ao CBQL, participo como membro da diretoria nas gestões 2011-2012 e de 2018 até a atualidade, onde assumi a responsabilidade e o compromisso da presidência deste conselho.

BB – Que critérios utilizou para compor a nova diretoria do CBQL para que tivesse uma boa representatividade da cadeia do leite?

VP – Para compor nossa chapa, primamos pela representatividade, tanto em termos de distribuição geográfica, como em termos dos elos da cadeia produtiva do leite. Assim, a nominata da nova diretoria tem representantes de sete Estados da Federação, que hoje, juntos, representam mais de 76% da produção nacional e aproximadamente 85% da produção de leite cru adquirido por empresas com inspeção. Temos representantes do ensino superior, da pesquisa, da extensão rural, da indústria de lácteos, da indústria de equipamentos, membros da RBQL e de associação de produtores. Pode ser conferido no site do CBQL: https://cbql.com.br/.

BB – Qual a avaliação do Conselho a respeito da qualidade do leite e derivados no Brasil, nos últimos anos, sobretudo após a vigência das IN 76 e IN 77? O segmento da produção primária tem evoluído a contento na qualidade?

VP – As INs 76 e 77/2018 do Ministério da Agricultura são um marco regulatório muito importante para a qualidade do leite no Brasil. Fundamental destacar o fato de que as INs atribuem responsabilidades aos diferentes atores envolvidos no processo, inovando em temas. Outro aspecto que merece destaque é o fato da exigência de análises mais específicas e detalhadas de resíduos de antibióticos, com maior escopo de monitoramento de analitos. Esse ponto é de extrema relevância porque tem relação direta com a produção e obtenção de leite seguro. Talvez a interrupção de coleta de leite de propriedades que apresentaram não conformidade para CPP tenha sido o tema mais debatido em relação às INs, e sem dúvida o que mais afetou o segmento da produção primária. Esse ponto se refere ao leite que tenha apresentado média geométrica trimestral de CPP maior do que 300 mil UFC/ml. Quando isso ocorre, o produtor tem a sua coleta de leite suspensa até que seja comprovado o atendimento de tal parâmetro. Esse fato levou a maioria das empresas a concentrar seus esforços para o atendimento dessa exigência, levando a reduções muito significativas nos valores de CPP. Hoje a evolução da qualidade do leite nas diferentes regiões do País pode ser acompanhada no Observatório da Qualidade do Leite (OQL) (https://bit.ly/3z9xSBy).

BB – Quais os principais gargalos que você apontaria que impedem o País de alcançar maior qualidade na matéria-prima leite?

VP – O Brasil é um país de extensão territorial ampla e com uma agropecuária extremamente forte e competitiva, como é de conhecimento de todos. Quando nos referimos especificamente à produção de leite de vaca, o País ocupa a quarta posição atualmente dentre os maiores produtores mundiais, com uma produção de 36,364 bilhões de kg (Epagri/Cepa, 2022). Importante iniciar destacando que, durante muito tempo, se deu pouca atenção para a qualidade da matéria-prima leite, desde sua produção, estocagem na propriedade rural, transporte e acondicionamento nas indústrias. Contudo, nas últimas décadas, vários avanços ocorreram na cadeia produtiva do leite, com a geração de tecnologias de produção, granelização da captação do leite, melhorias em parques industriais e a regulamentação do setor por órgãos oficiais. Apesar de atualmente diversas tecnologias estarem disponíveis ao produtor de leite, possibilitando uma produção sustentável e de qualidade, enfrentamos grande dificuldade em diversas regiões do País para que o produtor possa receber e aplicar de forma adequada as boas práticas de produção e as tecnologias existentes, principalmente por limitações de técnicos para acompanhamento e assistência aos produtores. Sendo necessário a profissionalização da produção, que passa por apoio técnico e laboratorial qualificado ao produtor de leite. Também podemos destacar outros desafios do setor que acompanham gargalos nacionais de infraestrutura. Só para exemplificar, em recente levantamento de gargalos e demandas no setor realizado em Santa Catarina, a falta e a instabilidade de energia elétrica nas propriedades foi apontada como uma grande necessidade, e esta situação certamente não é diferente em outras regiões do País.

BB – O pagamento pelas indústrias de bonificação pela qualidade do leite tem avançado e surtido os efeitos esperados? Como você vê essa questão, discutida há tantos anos?

VP – A remuneração pela qualidade do leite tem evoluído consideravelmente em muitas cooperativas e indústrias de laticínios, especialmente em termos de contagem padrão em placa (CPP), contagem de células somáticas (CCS) e teor de sólidos do leite. O pagamento por qualidade é um fator muito importante de incentivo à melhoria da qualidade do leite nas indústrias que praticam políticas formais de remuneração pela qualidade. Nesses casos, a qualidade normalmente é percebida pelos produtores como uma possibilidade ou até mesmo obrigatoriedade, para garantir a sustentabilidade econômica da atividade leite. Da mesma maneira, as políticas de remuneração pela qualidade otimizam o trabalho dos diferentes atores da cadeia produtiva, tais como a equipe técnica das empresas de laticínios e dos serviços de transporte do leite cru granelizado, assim como facilitam o planejamento em curto, médio e longo prazos das indústrias, além da estabilidade na qualidade dos derivados lácteos produzidos, desta forma se estendendo até a mesa do consumidor.

BB – Existe uma heterogeneidade nas políticas de remuneração do leite cru entre as empresas. Você vê algum problema nisso que possa afetar a cadeia do leite?

VP – Sim, há um grande problema nessa heterogeneidade. Isso dificulta o planejamento da cadeia produtiva como um todo, provocando muitas vezes a transferência de produtores que não se enquadram em determinados quesitos de qualidade para indústrias que fazem o pagamento sem considerar a qualidade do leite cru. Outra dificuldade que vemos é que, por se tratarem de políticas internas das indústrias, não temos, pelo menos até onde sabemos, fontes de informação oficiais que nos permitam avaliar o avanço dos programas de remuneração nas várias regiões do País. Conhecemos algumas iniciativas de sucesso, porém seus impactos recaem somente sobre a região de atuação do laticínio/cooperativa, baseados em programas que levam em consideração indicadores de qualidade do leite ou sua composição, com uma precificação de ágio ou deságio em relação ao preço-base. Importante ressaltar que esses casos de sucesso têm como princípio um preço-base de referência associado a índices públicos como Cepea ou Conseleite, e os valores para acréscimo ou decréscimo do valor em porcentuais previamente estabelecidos e divulgados para os produtores.

É necessária a profissionalização da produção, que passa por apoio técnico e laboratorial qualificado ao produtor de leite”

BB – Em alguns Estados, segundo o Ministério da Agricultura, metade do que se produz de leite diariamente é destinada a empresas informais que processam o leite e derivados, sem nenhuma inspeção oficial. Como reverter tal cenário de informalidade na produção de leite e derivados no País?

VP – Realmente, este é um problema presente e histórico. A oferta de leite e derivados sem inspeção representa um enorme risco à saúde pública, uma vez que existe um leque de patógenos zoonóticos que podem ser veiculados através do consumo de leite cru ou derivados produzidos a partir deste. Importante ressaltar que não estamos desestimulando o consumo de derivados produzidos a partir de leite cru, mas sim de qualquer produto lácteo que não seja inspecionado. Resolver esse problema não é simples e passa por diversas ações que devem ser realizadas de forma conjunta para mitigar o problema.

BB – Quais deveriam ser tais ações? Pode destacar algumas que acha importantes?

VP – É preciso desenvolver políticas públicas que garantam aportes maiores de investimentos no setor de inspeção oficial para que este possa desempenhar seu trabalho da forma mais abrangente e eficiente possível. Além disso, apesar de a maior parte do leite do Brasil ser industrializada por indústrias de médio e grande portes, nas regiões com baixo nível de informalidade, parte considerável do leite é industrializada por indústrias de pequeno porte, para as quais políticas públicas tanto de financiamento da atividade, bem como a capacitação dos pequenos empresários e sua equipe precisam ser pensadas porque geralmente essas indústrias não possuem capacidade técnica e financeira para avançar em um processo de formalização, incluindo a inspeção sanitária do leite, seja ela municipal, estadual ou federal. Contudo, também é necessário a realização de campanhas massivas e continuadas de conscientização, tanto de produtores como de consumidores, dos riscos envolvidos da comercialização do leite e seus derivados sem inspeção.

BB – Destaque qual será a missão do CBQL em relação a esse processo de zelar pela sanidade dos alimentos lácteos e pela sustentabilidade da cadeia produtiva durante o seu mandato.

VP – No nosso entendimento, a grande missão do CBQL é difundir práticas corretas de produção sustentável de leite e derivados seguros, pautadas em garantia de saúde animal, respeito ao bem-estar animal e ao meio ambiente. O objetivo é integrar produtores, funcionários, técnicos e indústrias na agenda atual de que é preciso garantir a produção de alimentos seguros e de forma sustentável. Neste contexto, o CBQL, por meio de workshops, congressos, representatividade junto às universidades, instituições de pesquisa e aos órgãos regulatórios, tem discutido temas de grande relevância para todos os setores da cadeia produtiva, levando o que há de mais novo na ciência para melhoria da qualidade do leite. Pontos de grande relevância, relacionados à saúde animal, qualidade de água, uso racional de antibióticos e de outros medicamentos de uso veterinário estão permanentemente no radar do CBQL, além, é claro, da necessidade de um programa nacional de controle da mastite no País, fundamental para avanços consistentes em prol da qualidade da matéria-prima leite brasileira.

BB – Na sua avaliação, qual a importância para a bacia leiteira de Santa Catarina ter novamente o CBQL sob a presidência de um catarinense?

VP – Ter novamente o CBQL sob a presidência de um catarinense representa muito para o Estado, já que Santa Catarina tem uma das maiores bacias leiteiras do País, além de o alimento ser o quarto em importância na composição do nosso Valor Bruto de Produção (VBP). Não podemos deixar de ressaltar a importância social do leite para Santa Catarina, cujo meio rural é composto basicamente por pequenas propriedades. O leite promove distribuição de renda para a maioria dos municípios, 260 municípios dos 295 existentes possuem propriedades que fornecem leite a unidades industriais. Este também é um momento crucial para o Estado discutir assuntos importantes e pertinentes em relação à qualidade do leite. Santa Catarina comercializa leite com outros Estados brasileiros, estima-se que mais da metade do leite produzido tenha como destino o abastecimento de outros Estados, então é fundamental que busque estar à frente nas discussões, mas que também operacionalize a qualidade do leite a nível estadual. Ressaltamos ainda que o Santa Catarina está no centro da Região Sul, que tem se destacado no aumento da produção de leite, com incremento de novas unidades industriais.

BB – Que ações o CBQL vai promover visando à melhoria da qualidade do leite nas propriedades, com intuito de, num futuro próximo, podermos exportar leite para outros países?

VP – As ações para a melhoria da qualidade do leite devem ter um foco muito forte em gestão de pessoas, processos e resultados. É preciso reforçar o entendimento da necessidade de gestão dos processos e da melhoria da comunicação dentro das fazendas entre produtores, funcionários e técnicos e também fora da porteira, incluindo os agentes de coleta e transporte de leite e as indústrias. Com essa integração de todos os elos da cadeia produtiva e com a identificação das não conformidades em cada etapa, monitoramento das ações corretivas implementadas e padronização dos processos, acreditamos que podemos avançar. O comprometimento e compromisso dos recursos humanos com a gestão é peça chave quando pensamos em exportar.

BB – Para finalizar, cite os principais desafios a serem enfrentados durante sua gestão até 2024. E deixe um recado para os produtores do Brasil.

VP – O grande desafio da gestão será a realização do 10º Congresso Brasileiro de Qualidade do Leite, em 2024, em Santa Catarina. Vamos fazer um grande evento e esperamos integrar todos os elos da cadeia láctea do Brasil. Desde já trabalhamos para que todos os elos sejam participantes efetivos do CBQL e estejam presentes no Congresso. Elencando necessidades e gargalos e levando o conhecimento a todos os níveis, desde a academia, o setor produtivo e a indústria, sempre atentos às demandas dos consumidores de lácteos. A qualidade do leite é definida da “porteira para dentro”, portanto os produtores são “peça chave dessa engrenagem”, porém a busca pelo leite seguro e de qualidade é responsabilidade que deve ser compartilhada por todos os elos da cadeia produtiva, proporcionando apoio técnico aos produtores para que os resultados desejados por todos sejam alcançados no menor espaço de tempo possível.

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