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Não se pode pensar hoje num sistema profissional de produção de leite sem os requisitos da sustentabilidade, a começar pela proteção dos recursos hídricos

ÁGUA

Fazendas leiteiras ganham sustentabilidade

com o programa produtor de água

São propriedades em Guaratinguetá (SP) que participam de iniciativas de proteção ambiental, baseadas em conhecimento técnico-científico, que trazem maior previsibilidade sobre a gestão dos recursos hídricos

João Carlos de Faria, texto e fotos

No dia 22 de março foi comemorado o Dia Mundial da Água, que busca despertar na humanidade o quão importantes são os cuidados, no campo e nas cidades, para preservar esse recurso essencial para a existência de todos os seres vivos do planeta Terra. Quando escassa, ela provoca calamidades; quando em excesso, tragédias. A Balde Branco, sempre divulgando as boas práticas na produção leiteira com base na sustentabilidade, dá o merecido destaque às iniciativas focadas na questão ambiental, com o olho no presente e mirando o futuro.

O Ribeirão Guaratinguetá nasce na Serra da Mantiqueira e desemboca no Rio Paraíba do Sul, já na zona urbana da cidade de Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, que tem 95% do seu abastecimento com as águas deste que é praticamente o seu único manancial hídrico.

Por isso, desde 2011 toda a bacia hidrográfica do ribeirão é o principal foco do Programa Produtor de Água, iniciativa da prefeitura do município, em parceria com a Companhia de Serviço de Água, Esgoto e Resíduos de Guaratinguetá (Saeg), Basf, Fundação Espaço Eco, Escritório de Desenvolvimento Rural de Guaratinguetá (Cati/SAA) e Secretaria Municipal de Meio Ambiente, inspirado no projeto Conservador das Águas, de Extrema (MG), o primeiro no País a promover uma iniciativa dessa natureza, premiada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Cerca de cem propriedades rurais estão ao longo do trajeto do ribeirão, entre elas, a Fazenda Santa Terezinha, propriedade leiteira que é referência de produtividade na região, com rebanho de 150 vacas em lactação e produção de 3.500 litros de leite/dia. Do Girolando ao Holandês, com a meta de chegar a um grau de sangue de 7/8 de Holandês, o padrão genético da fazenda vem evoluindo sempre, mas atenta à necessidade de ter animais com maior resistência para enfrentar o calor da região e com a meta de chegar à média de 30 litros/dia por animal.

Sua história começou na década de 1940, quando o mineiro de Itajubá José de Faria decidiu migrar para São Paulo e adquirir as terras no bairro Capituba, onde se instalou, dando início à produção de leite. Atividade que mantém até hoje. No comando estão os irmãos Fábio e Marcelo Faria, a terceira geração da família, que assumiram o posto em 2010, quando faleceu o pai deles, José Geraldo Caltabiano de Faria, que assumira a fazenda em 1958, quando ainda tinha 15 anos.

Fábio Faria: “Se não tivesse reflorestado, protegendo as nascentes e adotado medidas de proteção ambiental, hoje estaria enfrentando dificuldades com o abastecimento de água no sistema de produção. Com certeza faltaria água”

Motivações – O objetivo do programa Produtor de Água é fomentar a qualidade e a disponibilidade de água para o abastecimento humano, mas, no caso da Fazenda Santa Terezinha, as ações desenvolvidas nesse sentido vão além disso e foram fundamentais para a produção de leite.

Fabio Faria conta que, inicialmente, o objetivo era “apenas” cumprir as exigências legais, advindas com o novo Código Florestal. “E, hoje, qualquer tipo de financiamento exige que o produtor esteja em dia com a legislação ambiental ou o dinheiro não é liberado. Esta foi uma forma de obrigar o produtor a cumprir a lei”, diz.

Outra motivação é que, à época, a fazenda já tinha planos de instalar o sistema de compost barn, passando do semiconfinamento para o confinamento, conforme viria a acontecer cerca de quatro anos atrás. “A gente precisa de água porque são 180 vacas que ‘moram’ no galpão e precisam de água. Então, a segunda questão foi a quantidade de água que seria necessária e como iríamos produzir essa água”, relata o produtor.

Em 2012 eles receberam a primeira proposta do Corredor Ecológico, uma Organização não Governamental (ONG) que dispunha de recursos para financiar o reflorestamento de algumas áreas da fazenda. “Ficamos receosos, assim como muitos outros proprietários que não toparam, mas depois decidimos participar e acabou sendo bom porque fazemos o reflorestamento sem custos. Foi um segundo passo.” Da área total da fazenda, de 480 hectares, 80 hectares já foram recuperados ao longo de dez anos.

O melhor, no entanto, segundo Faria, foi constatar, ao fim da primeira etapa, após dois ou três anos do primeiro plantio, que a água estava muito mais abundante e já não faltava como normalmente ocorria em anos anteriores, principalmente no inverno. “Começamos a ver que já não estava mais acontecendo isso”, recorda. Hoje, a água utilizada no compost barn vem de duas nascentes, sendo uma de reserva.

“O resultado foi uma surpresa, porque na verdade a gente não acreditava. Hoje, depois de tudo, a gente realmente vê que não falta mais água e, pelo contrário, tem aumentado.” Essa disponibilidade, segundo Faria, tornou viável o confinamento adotado na fazenda, porque em geral as vacas precisam consumir água na proporção do que produzem de leite.

Hoje, na Fazenda Santa Terezinha, há água em abundância para atender às necessidades hídricas dos animais no compost barn e para a limpeza das instalações e dos equipamentos

“Para fazer um investimento desse porte e aumentar a produtividade, eu precisava de água. Aqui, por onde as vacas andam, seja dentro do galpão, seja no percurso até ordenha e na própria sala de espera, onde normalmente elas são refrescadas, tem água à vontade, pois é fundamental, tanto para a produtividade, quanto para matar a sede.”

Cada vaca consome em média 25 litros de água por dia, o que, somados, resultam num total de 5 mil litros/dia para o rebanho, mas se forem inclusas a limpeza dos equipamentos e a lavagem dos estábulos, a demanda pode dobrar. Por isso Faria reconhece que, se não tivesse reflorestado, protegendo as nascentes e adotado medidas de proteção ambiental, hoje estaria enfrentando dificuldades com o abastecimento. “Hoje faltaria água, com certeza”, afirma.

Além da fartura de nascentes – são 15 no total dentro da propriedade –, a fazenda ainda conta com a vantagem de que toda a água utilizada em suas instalações chega por gravidade, o que reduz também o custo com energia elétrica e consequentemente o custo de produção do leite.

Somadas todas essas vantagens, ainda foi possível receber um incentivo financeiro por meio do Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), realizado anualmente pela prefeitura, conforme prevê a legislação que criou o programa Produtor de Água. A última parcela recebida foi em 2020. Outra vantagem prevista na lei é de que todos os eventuais créditos de carbono a serem gerados em decorrência do programa são de titularidade do proprietário e podem ser comercializados por ele, algo que ainda não vem sendo explorado por Faria.

O valor recebido é calculado por hectare e de acordo com as ações desenvolvidas na propriedade, como práticas e manejos conservacionistas de solo, melhorias e recomposição da vegetação nativa e proteção de nascentes e matas ciliares que contribuam para o aumento da infiltração de água no solo, a diminuição dos processos erosivos e sedimentação e o aumento da biodiversidade local, conforme a pontuação estabelecida pelo edital. O limite de área por produtor é de 30 hectares por ano e o valor pago varia de 10 a 30 Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (Ufesp) por hectare/ano, cerca de R$ 290,90 a R$ 872,70/ha/ano.

Mudança de mentalidade – Independentemente desse pagamento, Faria admite que a mentalidade em relação à questão ambiental mudou muito. “No início era por obrigação, mas depois vimos o resultado e hoje, quando falo com alguém que esteja indeciso em relação a essas práticas, eu recomendo, porque sei que o resultado aparece e o benefício é muito maior do que a gente pensa.” O uso de áreas para a proteção das nascentes e de reflorestamento, segundo ele, não atrapalhou em nada o andamento da fazenda, que, além do leite também tem gado corte e agricultura, com o plantio de milho – 2,5 mil toneladas/ano para uso próprio – e de soja, que é comercializada.

Dois outros projetos de sustentabilidade estão na mira da fazenda para os próximos dois anos, segundo Faria. O primeiro é a utilização de resíduos orgânicos para a geração de bioenergia, com a instalação de um biodigestor, aproveitando o gás que é produzido; o segundo é a instalação de placas fotovoltaicas para a geração de energia solar, “zerando” a conta, que hoje é de R$ 11 mil por mês, amortizando o investimento num prazo de apenas cinco anos.

“Está faltando recurso para viabilizar esses projetos porque, no momento, as condições de financiamento estão muito desfavoráveis, mas não vai passar de um ano para que se tornem realidade. Se isso for possível, vamos praticamente alcançar a condição total de autossuficiência, pois teríamos supridas as duas principais necessidades da fazenda, ou seja, a água e a energia”, finaliza.

Práticas conservacionistas do solo – Pouco mais de três quilômetros de distância da Fazenda Santa Terezinha, no bairro do Rio Acima, fica o Sítio Santo Expedito, contemplado pelo edital de 2018, ainda em vigor, uma vez que os contratos têm duração de cinco anos. Com uma área de 19,5 hectares, mais cinco arrendados na vizinhança, a propriedade tem um rebanho de gado Jersey PO formado por 50 vacas, sendo 25 em lactação, com produção de 250 litros de leite/dia, e adota boas práticas ambientais principalmente no manejo de pastagens e conservação do solo. “Antes de entrar no programa a gente já vinha reflorestando algumas áreas”, afirmam os proprietários, Tatiana Cardoso de Freitas e Marcio Satalino Mesquita. Além disso, já havia sido feito o terraceamento das áreas mais inclinadas do sítio, com a finalidade de evitar o deslocamento do solo e barrar a erosão.

A única nascente da propriedade, segundo Tatiana, já vinha sendo cuidada desde 2016 e, depois de protegida, teve o processo de restauração da vegetação nativa otimizado. Todo o material utilizado para o isolamento da área onde está localizada foi financiado pelo programa Produtor de Água e, além disso, a propriedade já recebeu três parcelas do Pagamento por Serviços Ambientais, referentes aos anos de 2019, 2020 e 2021.

Tatiana Freitas: “Todo o material utilizado para o isolamento da área onde está localizada a nascente foi financiado pelo programa Produtor de Água e, além disso, a propriedade já recebeu três parcelas do Pagamento por Serviços Ambientais, referentes aos anos de 2019, 2020 e 2021”

No total, são 11 hectares inclusos no programa, sendo meio hectare da nascente que foi protegida e áreas de pastagens (10,5 hectares), nas quais algumas práticas que já haviam sido adotadas, o que somou na hora da concessão dos benefícios. Por enquanto, a água utilizada no dia a dia da atividade leiteira ainda é toda extraída de um poço artesiano, mas há planos para que, futuramente, a água da nascente seja usada pelo menos para a irrigação dos piquetes do sistema de produção e alimentação do rebanho.

Os cuidados adotados para a conservação do solo e a recuperação das pastagens são evidências de que o manejo das áreas de piquete é feito da forma mais adequada ambientalmente, o que inclui a calagem e a adubação periódica, estimulando a fertilidade do solo. São três módulos de pastejo e 75 piquetes, sendo um com tifton e dois com braquiária marandu (braquiarão).

“O processo é contínuo e ter um manejo correto das pastagens para manter a água na área faz toda a diferença também para a qualidade da pastagem e, por consequência, influencia na produção, pois, com boa alimentação, a produtividade também melhora e os custos se reduzem. No fim das contas, fechamos um ciclo”, afirma Tatiana.

Programa é uma parceria público-privada e paga mentos se tornam política pública municipal

 
Um balanço feito pela Secretaria de Agricultura da Prefeitura de Guaratinguetá no fim de 2021 aponta que 67 propriedades já foram beneficiadas pelo Programa Produtor de Água, sendo 23 no primeiro edital, em 2011; mais 30, em 2012 e 14 no último edital, realizado em 2018.

Desde o início, os custos são divididos entre o Serviço de Águas, Esgoto e Resíduos de Guaratinguetá, que já aportou um total de R$ 240 mil, ou R$ 80 mil para cada edital, e a Basf, que destinou R$ 150 mil, em três parcelas de R$ 50 mil, somando um valor total de R$ 390 mil de investimentos, dos quais R$ 302,3 mil em Pagamentos por Serviços Ambientais.

Como esses pagamentos se tornaram uma política pública amparada por lei municipal, o programa também conta com recursos orçamentários da própria prefeitura, o que eleva esse valor aplicado para R$ 765 mil. Além da remuneração aos produtores, os recursos também servem para a aquisição de equipamentos, pagamento de mão de obra e instalação de fossas, em ações de saneamento na bacia, que também fazem parte do programa.

A engenheira agrônoma Melissa Bizarelli (foto), responsável técnica pela iniciativa no âmbito da Secretaria de Agricultura, afirma que o programa, que conta com o empenho do secretário Júlio César Ramos da Silva, teve seu início em 2010, tendo como um de seus principais mentores o engenheiro agrônomo Marcos Martinelli, do Escritório de Desenvolvimento Rural de Guaratinguetá (Cati/SAA), que praticamente fez todos os estudos e formatou o projeto ao qual continua se dedicando.

A escolha da bacia do Ribeirão Guaratinguetá, além de ser o manancial de abastecimento da cidade, levou em conta o fato de já ter sido anteriormente objeto de outros projetos, como o programa estadual de microbacias hidrográficas e por ser o ribeirão um afluente do Rio Paraíba do Sul.

Por isso, muitos dos participantes do primeiro edital, em 2011, como a Fazenda Santa Terezinha, já haviam passado por essas iniciativas que estavam em andamento ou já haviam sido desenvolvidas anteriormente, como o Corredor Ecológico, citado por Fábio Faria. A partir de 2012, quando um novo edital foi lançado, as parcerias foram sendo estendidas para outros projetos, com recursos vindos de outras fontes, como o Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro).

Mudanças e participação – “Em 2017, começamos a mudar o foco, pois o conselho gestor viu que era preciso ter maior participação do produtor, percebendo que estava havendo um conceito errado sobre a iniciativa. Hoje o produtor também tem de ser parceiro do programa e dar uma contrapartida, na maioria dos casos oferecendo a mão de obra necessária para a execução do projeto, sob a orientação da equipe técnica”, afirma. Isso soluciona um dos problemas que é exatamente a falta de mão de obra. Outras condições exigidas para participar do programa é a apresentação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a negativa por parte da Cetesb quanto a possíveis infrações ambientais cometidas pelo produtor.

O projeto tem várias etapas: na primeira, que ocorreu em 2018, foi feita a recuperação de nascentes e para isso o produtor recebeu todo o material necessário para isolar e proteger a área. “Só o fato de isolar a nascente, a mata já começa a se regenerar”, diz a agrônoma. No segundo ano, em 2019, o trabalho feito foi para a conservação do solo; em 2020 e 2021, as ações estão sendo voltadas para o saneamento e já foram instaladas 44 fossas sépticas biodigestoras, em substituição às chamadas “fossas negras”.

Resultados – A mensuração dos resultados, segundo Melissa, ainda não foi feita em termos quantitativos para medir o volume de água, mas a observação e os relatos dos produtores são sinais claros de que houve incremento real na produção de água. Um estudo realizado pela Fundação Eco, parceira do programa desde 2014, também aponta o aumento de 3,4% da absorção de água pela bacia e redução de 18,9% da taxa de erosão do solo.

Segundo o biólogo Tiago Egydio Barreto (foto), coordenador de Sustentabilidade Aplicada da Fundação Espaço Eco, que é a responsável pelo corpo técnico que dá suporte consultivo nas atividades de restauração florestal, entre outras, e na gestão do programa, ao longo de dez anos a iniciativa já promoveu impactos positivos em cerca de 415 hectares, dentre recuperação e conservação de florestas e práticas conservacionistas de solo.

“Os fenômenos climáticos podem afetar a quantidade de chuvas, mas nossas ações podem afetar negativamente ou positivamente a disponibilidade hídrica. Por isso, planejar e desenvolver iniciativas como esta, baseadas em conhecimento técnico-científico, pensando em causa e efeito, traz maior previsibilidade sobre a gestão de processos, inclusive no abastecimento hídrico”, afirma Barreto.

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