balde branco

Nessa premissa, com maior disseminação de conceitos de segurança e saúde, matis poderá ser exigido pelo consumidor quanto aos alimentos que adquire. As indústrias precisam se preparar para esta nova onda de controles. Tal demanda também se dará dentro da porteira. Por sorte, parte de tais exigências está contemplada nas normativas do leite.

João Antônio dos Santos

ENTREVISTA

Roberta Mara Züge

HOJE, a única certeza é que as pessoas precisam de ALIMENTOS SEGUROS E DE QUALIDADE

   Roberta Mara Züge, médica veterinária, mestre e doutora, desde 2002 começou a se dedicar a projetos de desenvolvimento e inovação no setor agropecuário. Dentre eles, atuou na coordenação das normas para certificação de leite, projetos para estruturação de laboratórios-referência em bancos de germoplasma e programas de inteligência artificial aplicados ao agronegócio, entre outras iniciativas. A somatória dessas experiências permitiu-lhe compor uma equipe para criar um aplicativo para atendimentos das legislações da cadeia do leite, o Milk Wiki.

Balde Branco - Você praticamente sempre esteve envolvida com a produção leiteira. Como vê a evolução do setor nos últimos anos?

   Roberta Züge – Inegavelmente, nas últimas décadas houve um crescimento muito grande do setor, acompanhado do incremento da qualidade do leite. Mesmo assim, ainda patinamos em algumas regiões, tanto em produtividade quanto em qualidade. De qualquer modo, temos um terreno fértil que pode ser muito explorado. Os desafios de impor um padrão para a qualidade e a produção do leite continuam existindo. Hoje, as INs 76 e 77 estão vigentes, são exigentes em relação aos critérios de produção, as tais boas práticas já exigidas na Europa na década de 1990. Além, claro, dos parâmetros de qualidade de leite. O Brasil tem uma dicotomia bastante gritante em relação à produtividade, mas demonstra que tem alterado esse cenário. Novas formas de produção, como o compost barn, permitem que animais mais especializados e exigentes possam ser criados em regiões não tão amistosas, desde que seja realizado o manejo adequado. Esses investimentos vão mudar o cenário da produtividade em diversas regiões do território nacional.

BB - Nessa evolução, o melhoramento genético, apesar de sua contribuição à produtividade dos rebanhos, ainda é pouco adotado por muitos produtores. Por que razão?

   RZ – A não utilização de raças especializadas faz com que o leite produzido tenha um custo de horas trabalhadas muito maior. Proporcionalmente, para produzir leite, gastam-se mais horas de trabalho quando se utilizam animais com baixa produtividade, pois pré e pós-dipping, além dos procedimentos de limpeza, precisam ser feitos igualmente para um animal de 8 ou de 40 litros. De modo geral, muitos que ainda não especializaram seus rebanhos dependem da mão de obra familiar e não computam este custo. Assim, enxergam como investimento alto a aquisição de genética melhoradora. Isso precisa ser mais bem explorado. Talvez uma melhor comunicação das raças precise ser gerenciada. Não há um trabalho que foque em acessar os distintos criadores. Precisa de uma sistematização de comunicação efetiva, com uso de redes sociais e aplicativos de comunicação entre os produtores. Vejo que muitos desses grupos se perdem em assuntos que não são o foco, acabam sendo mais de troca de informações, até piadas, além de muitas fake news.

BB - Quanto à qualidade e segurança do alimento, qual sua importância tanto para o produtor como para a indústria?

   RZ – O cenário, hoje, e a incerteza de como estaremos em poucos meses, deixa bem claro que a sanidade e a qualidade dos produtos precisam ser uma premissa incutida em cada envolvido da cadeia de produção. Vivemos num momento que poucas coisas são certas, uma das poucas, sem dúvida, é de que todos continuam a demandar alimentos. Claro, alimentos que sejam seguros. As relações humanas já estão se alterando. As empresas tiverem que testar, de forma impositiva, a experiência de trabalho remoto, as escolas precisaram, de uma semana para outra, ministrar aulas para crianças e adultos em plataformas de internet. O quanto tudo isso afetará também a cadeia de produção de alimentos? Seja do médico veterinário responsável pela sanidade dos rebanhos até o motorista que transporta o produto final, será que as mesmas práticas serão realizadas? Alguns problemas contra os quais nós guerreamos sistematicamente, como surtos, biosseguridade, transmissão, controles sanitários, etc. A pecuária está sempre de prontidão quando há alguma sinalização de doença viral importante. Um foco em outro continente nos coloca alerta para evitar que a enfermidade chegue às nossas porteiras. Nesta premissa, com maior disseminação de conceitos de segurança e saúde, mais poderá ser exigido pelo consumidor frente aos alimentos que adquire. As indústrias precisam se preparar para essa nova onda de controles. Tal demanda também se dará dentro da porteira. Por sorte, parte de tais exigências está contemplada nas normativas do leite.

BB - E qual o panorama após a vigência das INs 76 e 77? Pelo lado dos produtores está se consolidando uma “cultura da qualidade”, assim como para os laticínios?

   RZ – Pelos trabalhos que tenho realizado pelo Milk Wiki, estou acessando o cerne das indústrias frente aos atendimentos dos requisitos legais. Apesar de ter sido feita uma ampla divulgação das normativas, com oferecimento de material técnico por várias entidades, há ainda muitas dúvidas de como se deve proceder. As normativas elevam o patamar da indústria leiteira no Brasil. Elas exigem o cumprimento de conceitos de garantia da qualidade; de um controle real de fornecedores. São muito bem estruturadas em termos conceituais. De fato, representam um avanço para o setor. Mas, infelizmente, muitas empresas não estão preparadas para essa profissionalização. Confundem conceitos como indicadores, metas e objetivos. Mas isso não pode ser motivo para retroceder. Temos que ter ferramentas para que todas possam evoluir. Sem isso, continuaremos patinando e brigando pelo preço do leite em pó importado. Por estarmos vivendo no meio de um contexto único, onde vários serviços estão parados, como restaurantes, hotéis e escolas, é difícil conceituar o quanto as normativas possam ter afetado diretamente no preço do leite a ser pago. Por outro lado, como o produtor acaba tendo um papel mais passivo em relação às normativas, afinal ele precisa cumprir os procedimentos e processos determinados pelos laticínios, aparentemente há menos resistência por parte deles do que por parte de muitas indústrias.

As normativas elevam o patamar da indústria leiteira no Brasil. Elas exigem o cumprimento de conceitos de garantia da qualidade; de um controle real dos fornecedores

BB - Extrapolando o mercado interno, o que tudo isso representa quanto a capacitar o Brasil para ser um exportador efetivo de lácteos?

   RZ – Um passo extremamente importante foi dado com a publicação das normativas 76 e 77. Caso as indústrias venham a cumprir corretamente os requisitos impostos, isso já nos eleva para outra esfera. Como há exigências de capacitações e monitoramentos constantes, isso permite uma capilarização do conhecimento. Ou seja, levamos para todos os pontos de produção o conhecimento das melhores práticas no leite. Somente isso já seria suficiente para superar grande parte dos problemas que temos de produção. Aliadas a esta questão de capacitação, as normativas exigem planejamento. Para isso, há necessidade que se conheça seu negócio, exige que as indústrias reflitam e estudem seus gargalos e potenciais. Em outra esfera, as tecnologias disponíveis precisam ser mais bem empregadas. Elas que vão baratear processos e diminuir as distâncias entre a indústria e o produtor. Ainda temos uma certa rejeição a diversas inovações, mas, agora, frente a essa mudança brusca de relações, tanto trabalhistas como sociais, seremos forçados a ampliar o uso das tecnologias dentro da atividade leiteira, seja na indústria, seja no campo.

BB - Além da qualidade e da segurança do alimento, há outros fatores que o mercado consumidor está cada vez mais exigente – como o bem-estar animal, a origem do produto, a rastreabilidade... O produtor está se conscientizando sobre tais questões?

   RZ – Vivemos num mundo plugado. Informações corretas e fake news são compartilhadas intensamente. Isso exige que tenhamos mais transparência nas práticas que executamos. E também que sejam realizadas em conformidade com os requisitos técnicos. O bem-estar animal já é uma premissa para muitos mercados. Aqui estamos iniciando esta trajetória e, sim, quem pensa em longo prazo precisa se conscientizar em tratar os animais de forma correta e ter ferramentas para evidenciar tais ações. Além de realizar precisa comprovar que realmente faz. A rastreabilidade e origem do produto serão ferramentas para garantir que o produto consumido seja originado de propriedades que tratam de forma adequada seus animais.  A origem e rastreabilidade dos produtos devem ganhar uma visibilidade muito maior também no cenário nacional. As empresas vão precisar se preocupar com ferramentas para evidenciar que cumprem os processos produtivos, desde antes da porteira, de forma segura e os mantêm até chegar à mesa do consumidor.

BB – O produtor já tem consciência dessas exigências?

   RZ – Provavelmente, as inovações que estão sendo concebidas, para a cadeia do leite, serão mais utilizadas. Haverá mais necessidade de demonstrar atendimento a procedimentos que garantam a sanidade do produto, assim como evidenciar a rastreabilidade e origem. Aliado a isso, com a perspectiva de demora para uma volta do que chamamos de normalidade, os atendimentos e contatos, possivelmente, serão realizados cada vez mais de forma remota. Os produtores que ainda não estão conectados precisarão, também, comungar deste espaço de forma habitual.

BB - As tecnologias digitais vêm ganhando um espaço cada vez maior, sobretudo no setor leiteiro. O que o Leite 4.0 representa para o futuro da cadeia produtiva?

   RZ – O Leite 4.0 já é uma realidade em muitas propriedades. Neste momento, ele está cada vez mais demandado. Algumas tecnologias estão inacessíveis para muitos, com certeza. No entanto, com a popularização do uso, os custos tendem a baixar. Com o advento da necessidade de garantias de qualidade e sanidade dos produtos, o incremento da utilização deve ser imperativo. Afinal, precisa-se garantir para o consumidor na ponta desde o manejo adequado, até o acondicionamento correto. E sempre buscando a otimização dos investimentos e diminuição do custo de produção. O ponto alto é investir na sucessão das propriedades, inserindo mais o jovem na atividade. Estes, de modo geral, estão mais receptivos às tecnologias e devem adotar novas medidas para ampliar a utilização. Muitas dessas inovações não são excludentes aos produtores menores. Há, de fato, diversas que são mais custosas, acabam exigindo volumes maiores de leite para amortizar o investimento. Com o advento crescente das startups, bem provável que muitas outras inovações de baixo custo surjam.

BB - Aproveitando o “gancho”, você participou do mais recente Ideas for Milk com um projeto. Fale um pouco sobre ele.

   RZ – No Ideas for Milk pude apresentar uma proposta que era o que sempre desejei desde que iniciei os trabalhos com boas práticas agropecuárias: ter uma plataforma em que os registros e controles, além dos procedimentos, estivessem no ambiente digital. Afinal, os registros são importantes não somente para se comprovar que as ações são realizadas, mas também para análises de atividades. Para isso, eles precisam ser transportados do papel para planilhas, de forma a serem analisadas, compiladas, estratificadas, etc. Com o advento das INs 76 e 77, que exigem a adoção e o monitoramento de boas práticas agropecuárias em todos os fornecedores de leite, esta necessidade se tornou ainda mais imperativa. Assim, por meio de parceria com empresas que já concebiam sistemas voltados a grandes indústrias, pude realizar um desejo técnico. Nasceu o Milk Wiki, que está no mercado já atendendo laticínios e permitindo que estes se adequem às legislações. Hoje, aqueles produtores que já faziam as boas práticas para bonificação de qualidade, anotando seus registros em formulários físicos, estão fazendo diretamente no celular. O smartphone é uma realidade para a maioria das propriedades, está sempre à mão, ou no bolso, durante a lida do campo.  Essa plataforma está facilitando o atendimento remoto por parte dos técnicos, diminuindo a necessidade de visitas físicas também, por possuir aplicabilidades que permitem este monitoramento e contato à distância. No APP estão embarcados os treinamentos exigidos pelas INs, assim como todos os registros, procedimentos e o diagnóstico. Há possibilidade de auditorias, de envio de fotos e vídeos.

BB - Abordamos até aqui a evolução da produção leiteira – com a crise da pandemia de coronavírus, o que você vislumbra para o setor no futuro próximo?

   RZ – Uma das certezas que o mundo está tendo é que, o que seria o normal não voltaremos a ter tão cedo. Os países que estão saindo do isolamento estão fazendo de forma gradual, e com o freio de mão acionado, afinal, a qualquer momento eles podem fechar novamente, se novos casos comecem a surgir. Medidas para se adequarem às normas de segurança e higiene serão preconizadas e também mais fiscalizadas. Todas essas ações acabam alterando o comportamento das pessoas. Por outro lado, haverá maior demanda de alimentos para serem consumidos em casa. As empresas que conseguirem transmitir ao consumidor a saudabilidade dos produtos, talvez com alimentos enriquecidos, que sejam de preparo mais rápido e fácil, ampliem sua participação. Laticínios desses países já modificaram suas linhas, para atender aos produtos que estão sendo mais demandados, como os de maior tempo de prateleira. O leite UHT, que na Europa não era tão apreciado, ganhou mais espaço no carrinho do supermercado. O produtor de leite, que já se preocupa com a higiene de ordenha, acumula um conhecimento sobre contaminações em ambientes não limpos. Ou seja, está mais sensibilizado sobre os princípios que são necessários para o combate da enfermidade. Basicamente, além dos conceitos já amplamente discutidos, outros cuidados precisam ser preconizados. Evitar a entrada de pessoas na propriedade: caso seja imprescindível, manter a distância de, no mínimo, dois metros destes externos, higienizar tudo o que possa ter sido tocado pelo visitante. Melhor pecar pelo excesso. Nada que solução de cloro não resolva. Aos que possuem funcionários, realizar uma grande sensibilização com todos, mostrando os cuidados necessários. Uma sensibilização sobre os conceitos e ações que devem ser realizadas no combate da doença deve ser feita, também, com as famílias.

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