balde branco

CRÔNICA

Paulo do Carmo Martins

Chefe geral da Embrapa Gado de Leite

O leiteiro, o carteiro e a COVID-19

   Está circulando pelas redes sociais uma fotografia muito apropriada para este momento. Reproduz uma situação vivida em 1940, na Londres devastada por bombardeios nazistas. Em meio a escombros generalizados, um entregador de leite caminha para cumprir sua missão, que é a de levar leite a todas as famílias inglesas.

   França e principalmente a Inglaterra foram fortemente bombardeadas pelos alemães, até a entrada americana na guerra. Os nazistas preservaram Paris, que não teve nenhum de seus ícones destruídos, como a Torre Eiffel. Mas a capital inglesa não foi poupada. Ao contrário, foi alvo intenso de destruição. O que alemães buscavam era dizimar a imagem de nação símbolo de solidez, a economia mais importante da época, que se gabava de ser o reino onde o sol não se punha. Afinal, quando em Londres anoitecia, na Índia, Austrália e Hong Kong amanhecia.

   Todavia, os alemães mostraram à Europa e ao mundo a fragilidade inglesa. Mais do que residências, o que as bombas buscavam era destruir a autoestima do seu povo, desorganizando aquela sociedade. Esta estratégia acabou gerando vários efeitos importantes, que impactaram o mundo. A primeira é que, no pós-guerra, o berço do capitalismo se transformou no país democrático com a maior presença do Estado na vida das pessoas, até surgir Margareth Thatcher. A segunda é que Churchill aceitou entregar todas as suas bases militares espalhadas pelo mundo aos Estados Unidos. Este foi o preço que os americanos cobraram para entrar no conflito. Depois, foi somente esperar surgir um motivo, dado pelos japoneses em Pearl Harbor.

   Há um terceiro efeito que tem muito a ver conosco. Como a sociedade inglesa estava muito fragilizada, Churchill entendeu que a única forma de mostrar a presença do Estado era garantir a entrega estatal do leite gratuito em cada casa com criança. E também as cartas. Diariamente, portanto, as pessoas viam pelas ruas o leiteiro e o carteiro estatais. E isso os fazia se sentirem protegidos e renovarem suas esperanças. Pois, mesmo após o fim da Guerra, o leite continuou a ser oferecido gratuitamente pelo Estado às crianças inglesas, ricas ou pobres, e os correios, em muitos países, ainda hoje são monopólio estatal. Portanto, os bombardeios alemães, quem diria, contribuíram para criar dogmas na economia mundial.

   A covid-19 veio para ser um “divisor de águas” em nossas vidas. Por meio do sentimento sofrido temos a chance de chegar à razão, que nos leva a algumas conclusões. Voltar a valorizar a ciência é a primeira consequência. Como deixamos crescer a ideia de que vacina é algo ruim, a ponto de pais deixarem de vacinar seus filhos? Como acreditar que um fenômeno que já levava em colapso a rede de saúde da Itália, França, Grécia, Rússia e Estados Unidos iria ser algo inconsequente no Brasil?

 A covid-19 veio para ser um ‘divisor de águas’ em nossas vidas. Por meio do sentimento sofrido temos a chance de chegar à razão, que nos leva a algumas conclusões.”

   A segunda clareza é que os fatos têm mostrado que o Estado pleno não permite à sociedade captar os sinais que vêm do mercado e isso não se sustenta. Afinal, o sistema de preços é o único mecanismo criado pelo homem para educar o nosso comportamento: o que é escasso é caro e deve ser usado com parcimônia e o que é abundante é barato e pode ser usado sem muito controle. Mas acreditar numa sociedade regida plenamente pelo mercado é algo que vimos também não ser sustentável. Onde faltou Estado vive-se como no Haiti. O mercado não consegue dar respostas a situações disruptivas, como uma pandemia. Ao contrário, o mercado se trava em situações de extrema tensão.

   A terceira evidência é que descobrimos o risco embutido na economia globalizada, que considera os custos de produção como ponto locacional de investimentos. A cidade de chinesa de Wuhan, de onde se supõe surgiu o novo coronavírus, tem população de 11 milhões de pessoas, equivalente a Londres ou Nova York e Paris, juntas! Ali estão mais de trezentas empresas globais, que produzem bens de todo tipo. Por isso, em menos de noventa dias, a doença chegou nos cinco continentes, em mais de cem países. Além disso, os componentes para produzir sanitizantes, insumos médicos e equipamentos respiratórios, todos têm produção concentrada numa região do planeta, num país, causando perigosa dependência.

   A quarta clareza é quanto ao papel do agronegócio para a vida do urbano brasileiro. Nas cidades, tudo está parado ou funcionando precariamente, dependendo do lugar. Menos a chegada dos alimentos. No caso do leite, os preços ao consumidor, ao laticínio e ao produtor continuam instáveis. E os estoques também, com tendência de crescimento. Mas a pandemia não travou o setor. A produção continua fluindo em todos os municípios brasileiros, sem risco de desabastecimento. É evidente que o agro não é apenas comida na mesa. Isso é muito importante, fundamental, mas não é tudo. A mesa é o fim do caminho. Antes disso, tem o agro pagando as importações de respiradores vindos da China e os programas aos quais os urbanos assistem nos canais pagos. Afinal, tudo isso é pago lá fora em dólar, e a única forma de fabricarmos esta verdinha é produzi-la no campo.

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