balde branco

O meu sonho, a situação ideal da agropecuária queijeira, seria o “bolsa-vaca”. As "madames" ganham um chip na orelha dando direito a todas as vacinas e exames em dia. E auxílio para certificação das fazendas. Mais educação e assistência rural e menos punição. E bons comerciantes parceiros, que colaborem para o fortalecimento da cultura de vender queijo no Brasil

ENTREVISTA

DÉBORA PEREIRA

Para o queijo artesanal

não há caminho fora da coletividade

Mineira de Belo Horizonte, Débora Pereira foi criada na capital universal da goiabada, Ponte Nova. Jornalista, trabalha na revista francesa Profession Fromager desde 2012, o que lhe possibilitou lançar em 2019, no Brasil, a revista Profissão Queijeira. Depois, o que toma mais seu tempo é a direção da associação SerTãoBras, que foi criada em 2007 na Serra da Canastra para militar pela legalização e valorização dos queijos de leite cru no Brasil.

João Antônio dos Santos

Balde Branco – Qual é o perfil da mulher profissional Débora Pereira?

Débora Pereira – A roça sempre me atraiu. Fiz o mestrado em Extensão Rural na UFV e doutorado em Ciência da Informação na UFMG. Mudei para a França para terminar meu doutorado em Paris e aqui conheci meu marido, expert em queijos e hoje presidente da Fondation pour la Biodiversité Fromagère. Também sou professora em duas escolas francesas, a Cifca, em Paris, e a Mons Formation, em Roanne. Ministro as disciplinas de cultura queijeira, análise sensorial, cura e famílias tecnológicas de queijos. Também dou consultorias para ajudar produtores a agregar valor aos seus queijos no Brasil e na Europa. Sou a primeira maître fromagère brasileira da Guilde Internationale de Fromagers. Para minha surpresa e grande satisfação, ganhei, no dia 13 de março, a medalha de bronze no Concurso Nacional de Fondue da França, na frente de suíços, holandeses, belgas e franceses.

BB – De maneira geral, qual a importância da fabricação artesanal de queijos, haja vista a repercussão do Brasil no Mondial du Fromage?

DP – As medalhas no concurso do Mondial du Fromage de Tours ajudaram muitos produtores a mudarem suas vidas para melhor. Tive notícias de alguns que aumentaram em 200% ou 300% suas vendas depois da conquista. Os prêmios também ajudaram a chamar a atenção do mundo político para agilizarem legislações a favor do queijo, e isso é muito positivo! O reconhecimento e a preferência pelos queijos artesanais brasileiros também são fortalecidos pelas novas tendências do mercado consumidor, que anda muito desconfiado de comidas com conservantes, com aditivos e ultraprocessadas. O consumidor quer ter certeza da origem dos alimentos, quer saber até o nome da vaca. A pandemia veio reforçar essa situação. Produtores e comerciantes não estão se queixando das vendas, pelo contrário, eles têm se saído muito bem!

BB – Como especialista neste segmento, como você vê a trajetória dos queijos artesanais brasileiros, que, felizmente, saíram da clandestinidade e desde algum tempo ganharam espaço no mercado e também na mídia?

DP – Temos ainda muito potencial para melhorar. Por enquanto, nem 5% dos produtores de queijo artesanal saíram da clandestinidade. Temos duas leis federais para o queijo artesanal, temos o Selo Arte, e meia dúzia de leis estaduais. Temos sim coisas positivas, muitos selos artes, em São Paulo no começo de abril foram mais duas queijarias: a Rima e Montezuma, pessoas sérias, mas que levaram anos para ter este reconhecimento. Se as políticas públicas rurais fossem eficazes, o número de produtores certificados no Brasil não seria tão baixo. Em um dos últimos censos sobre a realidade do produtor rural brasileiro, havia um número de 80 mil produtores artesanais de queijo no Brasil. Não tem nem 200 com selo arte. Em Minas Gerais esse número já foi estimado em 30.000. O número de produtores certificados pelo IMA não chega a 100. Então, podemos considerar que as políticas públicas para o queijo brasileiro, em sua quase totalidade, não funcionam. Isso é muito triste. Acreditamos que tudo vai melhorar e queremos estar juntos, em diálogo com todas estas instituições, para melhorar este cenário e aumentar o número de produtores certificados.

BB – Agora o queijo artesanal está na berlinda, mas podemos dizer que é um segmento que ainda está engatinhando em termos de mercado. Qual o caminho para se consolidar como um produto diferenciado, de diversas regiões e características variadas?

DP – Acredito na mobilização de produtores, comerciantes e entusiastas, que têm feito um trabalho incrível pela valorização do queijo artesanal. O caminho para se consolidar, não menos do que ousar em novas receitas autorais, é investir em rebanhos saudáveis, principalmente certificados e livres de tuberculose e brucelose. Embora isso seja exigido na lei do queijo artesanal, não existe nenhum rebanho certificado livre de tuberculose e brucelose na Serra da Canastra, por exemplo. O meu sonho, a situação ideal da agropecuária queijeira, seria o “bolsa-vaca”. As “madames” ganham um chip na orelha dando direito a todas as vacinas e exames em dia. E auxílio para certificação das fazendas. Mais educação e assistência rural e menos punição.

BB – Pensando no fortalecimento do segmento, qual o caminho para esses produtores? Você acha fundamental que eles se reúnam em associações e cooperativas próprias?

DP – Não há caminho fora da coletividade. A França tem 51 queijos de denominação de origem protegida (DOP), cada qual regida por uma ou mais associações, que contratam órgãos certificadores externos para garantir que todos os produtores respeitem os cadernos de regras. Essas regras são definidas pelos próprios produtores. Não acontece uma reunião, nem audiência, nem redação de regulamentos para os queijos das quais os produtores não participem. E os queijos DOP recebem subsídios todos os anos para campanhas de marketing, que os tornam mais conhecidos. O Código Europeu de Boas Práticas de Higiene na produção de queijo artesanal e de produtos lácteos foi construído de forma coletiva. Mais de 400 entidades de toda a cadeia do queijo, entre produtores, fiscais, pesquisadores e comerciantes, participaram. São quase cem páginas de conselhos, mas não há nenhuma obrigação. Aconselha-se o produtor a não cruzar o fluxo do produto na queijaria, mas se ele quer fazer diferente, ele não é multado nem repreendido. Há apenas uma obrigação de resultados, que é um queijo saudável. Para a gestão dos riscos, quando acontece um problema de contaminação, o produtor é orientado de perto para resolver, uma lógica de educação do produtor, e não de punição. Este seria o caminho fundamental: o incentivo à participação dos produtores na redação das normas, nos regulamentos dos queijos, a motivação ao cooperativismo e associativismo. Estamos apenas começando a escrever esta história.

BB – São Paulo acaba de aprovar a legislação sobre Produtos Artesanais de Origem Animal. O que isso representa para SP, até mesmo como exemplo para outras regiões?

DP – Isso representa muito! Pela primeira vez houve um regulamento construído de forma participativa junto aos produtores. Sob muita motivação política, claro. Mas ainda precisamos de tempo, ao menos de um ano ou dois, para saber quantos produtores serão certificados efetivamente. Todos estão esperançosos.

Na França, não acontece uma reunião, nem audiência,
nem redação de regulamentos para os queijos artesanais
sem a participação dos produtores”

BB – Quanto às estratégias de comercialização e de marketing, o que você recomendaria para esses produtores?

DP – Buscar bons parceiros para vender seus queijos fora da fazenda, estabelecer com eles uma relação de confiança. Muitas vezes os produtores são aconselhados pelas instituições a se transformarem em empresários, acumulando todas as atividades da fazenda, fabricação, cura e mais as vendas. Se o produtor encontrar bons comerciantes parceiros, ele colabora para o fortalecimento da cultura de vender queijo no Brasil e ainda fica mais concentrado em sua atividade principal.

BB – Hoje, o queijo artesanal atende a um nicho de mercado, a começar pelo seu preço nos pontos de venda – como fazer para expandir esse consumo e mesmo tornar o preço mais acessível?

DP – Acho que, com o crescimento dos atores, esse mercado vai se autorregular sozinho. Mas esse preço para queijos certificados reflete também tudo o que um produtor precisa investir para se adequar às normas brasileiras, não fica barato. Por outro lado, o queijo caipira clandestino das regiões mineiras é muito barato. Os queijeiros que os coletam nas fazendas pagam entre 12 e 17 reais por queijo de cerca de 1,2 kg, é mais barato nas chuvas e mais caro na seca. Eles são vendidos por pelo menos três ou quatro vezes mais nos pontos de venda como sacolões e lojas que não são “gourmets”. No Mercado Central de BH, por exemplo, encontramos queijos “tipo” canastra a partir de 35 reais. Imagine o valor que recebe o produtor na fazenda.

BB – Uma ótima novidade é o Mundial do Queijo do Brasil (em sua segunda edição aqui), que será realizado na capital paulista, de 15 a 18 de setembro de 2022. Qual sua importância para o segmento de queijos artesanais brasileiros?

DP – Esperamos valorizar ainda mais o queijo, colocando lado a lado queijos artesanais e industriais em um concurso internacional. Em sua 2ª edição no Brasil, o evento itinerante ganha a capital gastronômica brasileira: a cidade de São Paulo, que vive a efervescência do queijo autoral! A localização escolhida é o novíssimo Teatro B32, no coração da emblemática Av. Faria Lima, projetado pelo arquiteto Eiji Hayakawa. Inaugurado em setembro de 2021, o espaço já sediou eventos importantes, como o Latin America’s 50 Best Restaurants 2021. Colocar o queijo nesse altar do capitalismo brasileiro é uma forma de assumir essa elitização do queijo artesanal como uma estratégia de valorização. Queremos o assunto em todas as mídias nacionais e internacionais.

BB – O que você destacaria quanto a organização, divulgação, oportunidades de mercado e expectativas com o evento?

DP – Esperamos receber mais de 1.200 queijos inscritos e cerca de 50 mil pessoas. Temos uma programação específica para dois públicos: os profissionais e os consumidores entusiastas do queijo. Será realizada uma feira de queijos e alimentos artesanais na praça do teatro, para venda direta. Dentro do teatro, estandes de fornecedores de materiais e insumos de queijaria vão apresentar as últimas tendências do mercado. Além disso, teremos o concurso de melhor queijista (o comerciante de queijos), um show de sabores e texturas de queijo, inspirado no concurso que ocorre na França. O vencedor será contemplado com uma vaga para concorrer no concurso mundial em Tours, em 2023, e uma passagem de avião para comparecer ao evento. Teremos ainda o concurso de melhor queijeiro, voltado para fabricantes de queijos. Esses dois concursos são inéditos no Brasil e serão abertos ao público. Para o concurso de queijos, temos a missão de formar um batalhão de jurados. Toda a organização está sendo realizada por membros da SerTãoBras e do Club Brasil da Guilde Internationale des Fromagers, instituição parceira. Além de fortalecer o cenário do queijo artesanal brasileiro, queremos projetar nossos melhores queijos internacionalmente. A viagem da comitiva internacional está sendo organizada pela Guilde des Fromagers e pela Federação dos Queijeiros da França. Depois das 57 medalhas conquistadas no último mundial francês, muitas matérias foram veiculadas na França sobre os queijos brasileiros. Produtores da Canastra e de Alagoa, em Minas Gerais, receberam a visita de jornalistas franceses, isso é genial!

BB – E quanto aos produtores de queijos artesanais, quais os critérios para participar como expositor?

DP – De acordo com as instituições paulistas, podemos vender queijos na feira e aceitar no concurso produtores que têm alguma certificação: municipal, estadual ou federal. Estamos motivando mais municípios a criarem o serviço de inspeção municipal para que isso aumente a possibilidade de participação. A associação SerTãoBras tem hoje cerca de 130 produtores associados em nove Estados, de Norte a Sul do Brasil: Pará, Paraíba, Bahia, Goiás, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Na Bahia, os produtores já estão se mobilizando por meio de consórcios de municípios para poderem participar, por exemplo. Eles terão prioridade para participação.

BB – Que recado você gostaria de dar para os produtores de queijos artesanais do Brasil, sobretudo para garantirem um produto diferenciado, de alta qualidade e seguro?

DP – Se o produtor quer realmente produzir queijos com assinatura do terroir, deve conquistar a autonomia da alimentação do seu rebanho cultivada na sua fazenda. Não tem como falar de queijos terroir se a maioria do alimento vem de fora da fazenda. O queijo autoral do futuro vai vir de práticas agroecológicas, sustentáveis, que devolvem o carbono para o solo, feito do leite de animais saudáveis e felizes, que comem uma alimentação variada e natural. Queijos que vão ter sabores complexos porque vão refletir a biodiversidade da natureza do local. Este é o melhor marketing que pode ser feito.

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