Na língua indígena, a palavra Mantiqueira significa “gota d’água”, mas conta a lenda que o termo também pode se traduzir como “a serra que chora”, referência aos rios, riachos e córregos que do lado paulista desaguam no Rio Paraíba do Sul. Daí a sua importância como manancial de abastecimento de boa parte da região vale-paraibana.
É nesse contexto que o Sindicato Rural de Cruzeiro e Lavrinhas tem atuado, buscando mostrar a seus associados e à sociedade a importância de práticas ambientais de proteção dos rios e nascentes, sob a responsabilidade do produtor rural.
O envolvimento da entidade com a questão ambiental já vem de mais de década, mas, há cerca de três anos, conjuntamente com as prefeituras de Cruzeiro e Lavrinhas, iniciou ações visando à adequação ambiental de propriedades rurais ao Programa de Regularização Ambiental (PRA).
O programa, denominado “Protetor da Mantiqueira”, tem proporcionado a restauração da mata ciliar nas micro bacias dos Rios do Braço, Água Limpa, Jacu e, futuramente, na micro bacia do Batedor, envolvendo aproximadamente 20 propriedades rurais.
O total de investimentos é de aproximadamente R$ 2,7 milhões, recurso que vem do Comitê de Bacias Hidrográficas do Rio Paraíba do Sul (CBH-PS), por meio do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro), além das parcerias com empresas e organismos como a The Nature Conservancy (TNC) e WWF Brasil.
“O Vale do Paraíba é vitrine porque é a região mais populosa e mais industrializada do País e tem uma importância hídrica muito significativa para os dois maiores centros urbanos brasileiros. Temos muito a fazer nessa questão ambiental”, afirma o presidente do sindicato, Wander Bastos.
Olhar para o futuro – O empresário Carlos Antonio da Silva é proprietário da Fazenda Santana e do sítio Willian Zappa, onde produz 800 litros de leite por dia, com plantel de 35 vacas em lactação e média de 23 litros/vaca, no sistema de semiconfinamento, ambos localizados no bairro Capela do Jacu, distante cerca de 12 km de Lavrinhas, ao pé da serra da Mantiqueira, onde nasce o Rio Jacu, principal manancial de abastecimento da cidade.
Na fazenda, que fica próxima ao sítio, a pecuária de leite é consorciada com gado de corte, sendo que 35% aproximadamente de sua área é reservada para bezerras e novilhas, desde o desmame até 30 dias antes da primeira cria, e para vacas também, até a hora de parir. É nessa área, contornada pelo Rio Jacu e afluentes, que está sendo feita, há cerca de um ano, a formação de 9,2 hectares de mata ciliar.
O resultado já é bastante nítido quando se comparam as áreas restauradas com as demais: nas primeiras, há diversas espécies de árvores e já se vislumbra a formação de uma mata ciliar densa e variada, enquanto nas áreas não restauradas, o rio ainda está totalmente vulnerável.
“Você percebe claramente a margem sendo protegida nas áreas onde foi feito o plantio e visualmente já se verifica o progresso que fizemos”, afirma o produtor. Ele, que pretende ampliar o projeto para outras áreas, inclusive no sítio, entende que boa parte dos produtores ainda é resistente à ideia. “Às vezes, por ter uma visão muito pequena e olhar apenas para o presente e não para o futuro”, destaca Silva.
O produtor, segundo ele, deve se conscientizar de que a proteção dessas áreas é uma obrigação legal que terá que ser cumprida e do seu papel de produzir de água. “Tão importante quanto eu ser um produtor de leite é eu ser um produtor de água, algo que é essencial para a própria pecuária”, ressalta.
Otimização de áreas para o leite – Já o presidente do sindicato, Wander Bastos, e seu filho Gabriel Bastos produzem 700 litros de leite por dia na Fazenda Itamirim, no bairro Embaú Mirim, em Cruzeiro, onde já recuperou 20 hectares de mata ciliar. No seu caso, a área de proteção que margeia o Rio do Embaú Mirim foi recomendada pela Cetesb para que fosse feita ali a compensação ambiental imposta a uma empresa da cidade.
Depois de quase cinco anos e com a mata já consolidada, um dos resultados mais positivos, segundo ele, é o aproveitamento adequado dado à várzea, que antes ficava totalmente inundada nos períodos de chuva, inviabilizando seu uso numa parte considerável do ano.
Hoje, a várzea de 32 mil metros, onde antes era plantado milho de silagem, com resultados questionáveis, está dividida em oito piquetes de 4 mil metros cada, utilizados no sistema de pastejo rotacionado.
“As enchentes se acabaram, a drenagem da água melhorou e o aproveitamento é muito melhor. Utilizo a área com mais eficiência, o que não ocorria com o milho ou o pasto, como era feito. Ou seja, fui para um sistema intensivo, com um custo muito menor”, afirma.
Bastos aposta na sua própria experiência como argumento para convencer outros produtores a aderir à ideia de sustentabilidade, mas enumera outras razões para isso.
“O primeiro argumento é econômico. Há disponibilidade de recursos para destinar ao produtor para recuperar aquilo que já seria obrigado a fazer, mas sem que precise gastar dinheiro do bolso, além de poder verticalizar a produção nessas áreas com atividades como as frutíferas ou o turismo rural, pois a região é propícia para isso”, diz.
Outra fonte de renda ao produtor é a neutralização de carbono, que agrega valor ao leite e pode ser feita com o plantio de árvores ou a integração pecuária-floresta ou pecuária-lavoura-floresta. Mas Bastos entende que sindicatos, associações e cooperativas precisam se envolver. “Senão, de novo, vai ter alguém ganhando nas nossas costas. A própria cooperativa que compra nosso leite poderia negociar o produto com carbono neutralizado com as indústrias.”
Números promissores – Somadas as três micro bacias onde o projeto começou, são 152,4 hectares já recuperados, com plantio de 77.225 mudas e 23 mil metros lineares de cercas. A média das áreas recuperadas por propriedade é de 3 a 4 hectares, ao custo estimado de R$ 40 mil por hectare, ganho que é contabilizado a favor do produtor. Das 20 propriedades envolvidas, dez são produtoras de leite.
Na Fazenda Batedor, área de recarga hídrica responsável por 70% do abastecimento da cidade de Cruzeiro, o investimento é de R$ 1,1 milhão, com o plantio de 44,4 mil mudas nativas, em 84 hectares, sendo 74 hectares de enriquecimento, com adensamento de 4 x 4 metros e média de 625 mudas/hectare, e outros 10 hectares utilizando a muvuca, técnica nova para a semeadura direta.
O engenheiro agrônomo Fabiano Haddad Collard, responsável técnico pelos projetos ambientais do Sindicato Rural, relata que a demanda surgiu há alguns anos, dentro da Câmara Técnica de Restauração, do Comitê de Bacias Hidrográficas do Rio Paraíba do Sul (CBH-PS).
O primeiro projeto, conta ele, foi desenvolvido com a prefeitura de Lavrinhas, na micro bacia do Rio do Braço, a partir de abril de 2019 e previsão de término para em 2022, envolvendo quatro propriedades rurais.
O próximo, em vias de se iniciar, será na micro bacia do Rio Brejetuba, em Cruzeiro, com 92 hectares e dez propriedades rurais, sendo duas de leite. “Além da restauração e da adequação ambiental das propriedades ao CAR e ao PRA, vamos trabalhar o saneamento rural, com a instalação de fossas sépticas”, explica. O projeto vai custar R$ 1,49 milhão.
Segundo o engenheiro agrônomo, além da muvuca, será utilizado o plantio de adensamento e enriquecimento e de espécies nativas. Para ser inserida no programa, a propriedade passa por um diagnóstico e o proprietário assina um termo de adesão. Depois, tudo é submetido ao Comitê de Bacias e ao Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA) para aprovação e assinatura do contrato.
Collard afirma que a questão ambiental sofre ainda resistência de produtores mais antigos, mas tem boa receptividade entre as novas gerações. “Vejo uma mudança gradativa nessa mentalidade. Hoje, temos dois tipos de produtores: os mais conscientes, que querem realmente fazer por iniciativa própria, independente das exigências legais, e aqueles que só fazem para cumprir a lei. Mas isso está mudando por influência dos filhos.”
Os resultados, segundo ele, já são visíveis, mas virão com maior impacto no médio e longo prazo, com a redução da ocorrência de assoreamento, melhor qualidade e o aumento do volume da água produzida, além do aproveitamento da mata para o bem-estar animal. “O que estamos fazendo é ajudar o produtor a se ajustar à lei e ainda ganhar com isso.”
A mais recente inciativa do Sindicato Rural, com o projeto “Produtor Sustentável”, ampliará a atuação junto aos produtores de leite (vai envolver 150 propriedades). Esse projeto conta com a parceria da Cooperativa de Laticínios de Cachoeira Paulista (Colacap), Federação de Agricultura do Estado de São Paulo (Faesp), e, novamente, da The Nature Conservancy (TNC).
Nesse novo modelo, além da adequação ambiental das propriedades rurais para que o produtor se regularize com o PRA, com a restauração das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reserva Legal, restauração das áreas de proteção, incluindo as nascentes de água, haverá também procedimentos quanto à melhoria da qualidade do leite, saneamento – com a instalação de fossas sépticas – e pagamento por serviços ambientais de R$ 350/hectare/ano para cada produtor participante, num período de dez anos, relativo ao crédito de carbono.
Estão previstos cursos de coleta de sementes, identificação de espécies nativas da Mata Atlântica, além de programas de capacitação do Senar e com a equipe técnica da Colacap.
“Protegendo as nascentes, a gente fecha um ciclo do qual vamos ter um resultado real na produção de água e isso vai ter um efeito positivo junto à população”, afirma Bastos.
A TNC vai trabalhar com a condução de regenerantes e o crédito de carbono, enquanto o Comitê de Bacias Hidrográficas do Rio Paraíba do Sul (CBH-PS), por meio do Fehidro, entrará com recurso para o reflorestamento com frutas nativas e a restauração florestal em Áreas de Preservação Permanente (APPs). A parceria também inclui o Sebrae, a quem caberá as ações de gestão e mercado.
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