A história leiteira da Cabanha Ventana, Boa Vista da Incra (RS), começou quando Carmem Petersen Dias da Costa, ainda muito jovem, teve de assumir a gestão da propriedade familiar que, até então, era baseada na suinocultura. Pouco tempo depois, desistiu da suinocultura e começou a focar na produção leiteira. E, hoje, 30 anos depois, se destaca em eficiência, qualidade e como uma das maiores médias nacionais de produção de leite de vacas da raça Jersey em sistema de pastagem.
Carmem conta que foi para a propriedade, de 60 hectares, em 1987, para ajudar o pai na criação de porcos, enquanto ele cuidava de outro negócio. Naquela época, ao todo a família possuía cerca de 700 hectares, onde, além da suinocultura, tocava lavoura e criação de gado de corte. Daí seu pai comprou uma grande fazenda na divisa de Minas Gerais e Goiás, em Buritis. Só que essa fazenda mineira acabou não dando certo e seu pai “quebrou”, ficando apenas com os 60 hectares da Cabanha Ventana.
Com a área bastante reduzida e com a suinocultura passando por uma situação muito crítica, devido aos custos da ração, ela decidiu mudar de atividade, o que aconteceu em 1988, ao ganhar duas vacas da raça Jersey de sua mãe. No ano seguinte, nasceram as primeiras duas bezerras, somando-se então quatro animais que foram o ponto de partida da formação do rebanho “Ventanas Jersey”, já que nunca comprou nenhum animal.
“Eu era muito jovem e mesmo sem experiência optei pela produção de leite. E, no início, meu pai me ajudou muito a escolher os melhores touros. Assim, já utilizando a inseminação artificial, fui aprimorando a genética, com sêmen dos melhores touros para elevar o potencial de produção de leite”, conta Carmem.
Formada em Direito, ela nunca exerceu a profissão, dedicando-se desde então à produção de leite, juntamente com seu marido, Ulrico Beck, que cuida da parte da lavoura para a produção de alimento para os animais. O rebanho da Cabanha Ventana foi evoluindo geneticamente, sempre com o foco no potencial de produção das vacas, o que lhe rendeu muitos prêmios em torneios leiteiros, em todas as categorias.
“Tanto que tenho orgulho em dizer que nossa propriedade está entre as que registram as maiores médias de produtividade de vacas Jersey em sistema de pastejo”, diz ela, observando que, apesar disso, mudou o foco no aprimoramento genético.
“Há cerca de dez anos, eu e o Ulrico participamos de uma exposição com alguns animais. E então, comparativamente com os animais Jersey apresentados, nos demos conta de que nossos animais ‘eram feios’, apesar de altamente produtivos, puros e registrados na Associação dos Criadores da Raça Jersey. Daí passamos, no melhoramento genético, a buscar melhor sistema mamário e outros aspectos da conformação do animal e não somente leite, leite, leite…”, conta. Ela explica ainda que nesse programa de acasalamento, visando melhorar também a conformação e o tipo das matrizes, não tem fidelidade com nenhuma central de sêmen. Ela escolhe o touro que mais bem se adequa à vaca a ser inseminada, seja de que central for. “Sempre fazíamos por intuição. Olhávamos as vacas, sua conformação, e pesquisávamos o touro que pudesse melhorar esse aspecto e também o potencial de produção de leite.”
Outro ponto que destaca é que há uns seis anos passou a fazer a genotipagem dos animais. “Essa ferramenta é maravilhosa, pois diz exatamente, com precisão, o que a gente tem no rebanho, no que precisamos melhorar. Continuamos a fazer o acasalamento aqui, nós mesmos, e há anos contamos com a valiosa orientação do Roberto Nardi, técnico da Associação do Jersey. Não pensamos em animal de pista, mas queremos, claro, um animal bonito. Ou seja, um animal bonito, que seja muito produtivo e longevo.”
Carmem revela que não deixa vaca ficar velha em seu rebanho por uma questão afetiva. “Descartar um animal que nasceu na propriedade, produziu leite, deu bezerras é algo que me incomoda muito, pois conheço vaca por vaca, o nome de cada uma delas. Então, prefiro vendê-la ainda em plena vida produtiva, com sete ou oito anos, a outro criador.”
Seu rebanho é predominantemente de animais jovens, apesar de ter vacas de quinta, sexta crias. A sétima cria ela vai parir em outra propriedade. E, como os compradores são conhecidos seus, ela acompanha a história das vacas que vende e então sabe que elas têm uma boa vida produtiva. “Agora, temos confirmado pela genotipagem que elas têm uma vida produtiva bem longa.”
Espírito empreendedor – Em pouco tempo de entrevista, fica evidente a visão empreendedora de Carmem, que tem com muita determinação superado os obstáculos em sua história de produtora de leite.
Ela lembra que, quando foi tomar conta da Cabanha, já que o pai estava na fazenda da divisa de Minas com Goiás, era uma “guria” de 18 anos, inexperiente, e os funcionários não queriam receber ordens dela. Ela ligou para o pai relatando a situação e ele respondeu: “Faça o que você achar melhor”. “Então, decidi botar alguns deles pra rua, e a coisa começou a se resolver e fui tomando conta da situação com mais segurança na gestão da propriedade. Com muita determinação, fui dominando todo o serviço. Não há na propriedade o que eles façam que eu não faço.”
E essa visão, na prática, se realizou em ter um rebanho altamente produtivo, leite de qualidade e, mais recentemente, o diferencial de animais A2A2 e investimentos numa agroindústria na propriedade para processar derivados lácteos.
O rebanho da Cabanha Ventana conta com 127 animais, de mamando a caducando, todos com registro na associação da raça. Em lactação são 50 vacas, com média anual de 26,7 litros de leite/vaca/dia; 9 vacas secas; 60 novilhas (sendo que 18 estão prenhes e as 42 restantes ainda não chegaram à idade de inseminação), e 6 bezerras em fase de aleitamento. Em geral, as novilhas chegam à idade de inseminação artificial aos 13 meses e antes dos 24 meses estão na ordenha. A média de produção das novilhas de primeira cria está em 24 a 25 litros de leite/dia. Algumas chegam ao pico aos 30 litros de leite/dia.
O sistema de produção é a pasto. No inverno a base é de aveia e azevém, sendo também suplementadas com silagem de milho e concentrado no cocho, ao longo do ano. Dos 60 hectares da propriedade, a produtora utiliza 25 hectares para o cultivo de milho para silagem, obtendo uma produtividade média de 38 toneladas/hectare, dependendo das condições climáticas, que têm variado nos últimos anos. “A silagem é de boa qualidade, conforme mostram os resultados da análise bromatológica, indispensável para a formulação da dieta, considerando também a forrageira que elas consomem no pastejo”, diz ela. Para a pastagem são destinados cerca de 15 hectares para milheto no verão, tendo ainda vários piquetes com grama nativa e 3 ha de tifton. Com a aveia e tifton é feito o feno. No total, os animais têm uns 35 ha para pastar.
Quanto ao concentrado, este é produzido pela Cotribá (Cooperativa Tritícola de Ibirubá), especialmente formulado para a Cabanha Ventana. “O nutricionista vem à propriedade e com base nas análises da silagem e outras avaliações, formula a ração. Ou seja, especificamente para atender às necessidades do meu rebanho. Aqui não faço dieta total, cada vaca em seu brete recebe sua porção de ração. Assim, depois que saem para o pasto, podemos avaliar se alguma vaca deixou sobra de ração e ficamos de olho para ver se está apresentando algum problema de saúde”, explica Carmem.
As vacas são divididas em dois lotes, segundo a produção de leite. O lote 1, com 22 vacas, com média de 31,5 litros/vaca/dia, recebe 8 kg de concentrado, divididos após as duas ordenhas. O lote 2, com 28 vacas, com média de 22 litros, recebe 3 kg de manhã e 3 kg à tarde.
Como na região no verão a temperatura é bastante elevada, os animais contam com muitas sombras naturais, com vários tipos de árvores. “Elas têm livre acesso, elas escolhem onde querem ficar. Além disso, para lhes garantir conforto nos canzis e na sala de ordenha há dispositivos, chuveirinhos, para espargir água sobre elas para refrescá-las. Esses ambientes ficam bem fresquinhos, o que lhes garante maior conforto térmico e bem-estar”, comenta a produtora, observando que se não tivessem esse conforto dificilmente conseguiriam produzir o que produzem ao longo do ano.
Sobre mastite e algumas doenças mais comuns que acometem os rebanhos leiteiros, Carmem é taxativa: “Não sei há quanto tempo não registro caso de mastite clínica no rebanho, assim como problemas de casco, de torção de abomaso, entre outros.
Dificilmente o médico veterinário vem atender algum caso aqui. Para dizer a verdade, em todos esses anos tivemos como problema apenas três cesarianas”, diz ela, acrescentando que segue rigorosamente as recomendações de controle da mastite, como limpeza dos tetos, teste da raquete, pré e pós-dipping e o máximo rigor na higiene das pessoas que fazem a ordenha e também na limpeza dos equipamentos de ordenha e da sala, que tem suas paredes higienizadas duas vezes por dia.
Assim, a qualidade do leite está há vários anos neste patamar: CCS do tanque é de 152 mil/ml, na média do ano; CBT gira em torno de 4 mil a 5 mil/UFC/ml; o teor de proteína é 3,85% e de gordura, entre 4,5% e 4,9%, em média.
Para Carmem, a receita para esse alto desempenho da sanidade do rebanho e da qualidade do leite é estar junto com os funcionários e não descuidar de nenhum detalhe do bom andamento da produção. “Moro aqui na cabanha, levanto às 3h30, faço meu chimarrão e às 4h30 vou para a ordenha. Tem dias que também tiro leite, outros apenas fico acompanhando os trabalhos. Nada me escapa, estou de olho em cada detalhe de todo o processo da produção. É o amor pela atividade.”
Bezerras – Na cria e recria, o esmero de Carmem é muito grande. “Serão minhas vacas de amanhã. Então não pode haver nenhum descuido. Depois dos cuidados do primeiro dia de vida delas, com a ingestão do colostro e cura do umbigo, elas são criadas tomando na mamadeira o sucedâneo do leite, dois litros de manhã e dois à tarde, até o desmame. No quarto dia de vida elas já estão comendo ração e feno. Os cochos de ração e bebedouros de água são muito bem limpos todos os dias. E nunca, nesses 30 anos, perdi uma bezerra”, relata, destacando que elas são criadas tomando sol, chuva e não ficam em ambiente fechado. Suas casinhas não são um abrigo, apenas protegem o feno e a ração. Elas ficam amarradas pela coleira numa cordinha de uns metros na casinha, o que lhes permite mobilidade na área, onde ficam até os 60 dias de vida, quando desmamam. Essas casinhas são mudadas de lugar com frequência para evitar acúmulo de sujeira no local. Ela lembra que as bezerras só vão para um abrigo fechado quando chove muito ou está muito frio.
Durante essa fase, o desenvolvimento delas é monitorado e a dieta ajustada de acordo com a fase de crescimento. Quando estão com a idade de 13 meses, são inseminadas. Em relação a seus três funcionários, ela conta que um cuida do arraçoamento dos animais, enquanto outro é encarregado da ordenha e o terceiro também ajuda a fornecer o concentrado às vacas depois da ordenha e no que mais for necessário.
Agregando valor ao leite – Carmem explica que ao iniciar o uso da genotipagem dos animais, já buscou selecionar aquelas matrizes com a betacaseína A2, para acasalá-las com touros A2A2. “Fiz isso imaginando que as indústrias pagariam um adicional pelo leite de vacas A2A2. Porém, ninguém paga mais por esse leite, até mesmo por motivos técnicos no processamento, ou seja, precisariam dispor de outra logística de coleta e de beneficiar esse produto separadamente do leite convencional. Então, passei a focar na agroindústria”, diz ela.
Hoje, processa o leite A2A2, integral, semidesnatado e desnatado, e também produz doce de leite, nata, manteiga e queijos frescal e coalho. No momento, está na fase de testes o queijo Ventana e queijos com condimentos diversos e outros com damasco, que são produtos diferenciados. “Não fiz curso sobre a fabricação de queijos. Comecei fazendo aqueles mais comuns, que a gente já sabia, e me aprimorei um pouco mais graças à orientação de um amigo mineiro, conhecedor de técnicas de produção de queijos, que hoje mora em Portugal. Porém, queijos mais sofisticados, com técnicas de maturação especial, ainda não tenho esse conhecimento”, afirma, lembrando que, em março de 2020, ia fazer um curso sobre tecnologias de fabricação de queijos no Rica Nata, em Minas Gerais, mas veio a pandemia e não pôde mais viajar. Seus produtos entram na categoria artesanal, mas os leites e a nata, por lei, têm de ser pasteurizados.
A marca Ventana possui os selos SIM (Serviço de Inspeção Municipal) e Susaf (Sistema Unificado Estadual de Sanidade Agroindustrial Familiar, Artesanal e de Pequeno Porte-RS), o que lhe permite comercializar o produto em todo o Estado.
Carmem observa que houve uma melhoria de rendimentos significativa com sua agroindústria para produção desses derivados lácteos. Uma parte de sua produção de leite é vendida para a Lactalis, que lhe paga R$ 2,00 por litro, enquanto seu custo médio gira ao redor de R$ 0,92 o litro (no melhor momento de preço do leite, chegou a receber R$ 2,23 por litro).
Ela exemplifica que com 10 litros de leite produz 1,7 kg de queijo, que é vendido a R$ 55,00 o quilo. “Esses produtos vêm trazendo um bom reforço na margem de rentabilidade da atividade, assim como a venda de várias vacas e novilhas de alto padrão durante o ano”, relata, acrescentando que seu último cálculo é de um lucro líquido de R$ 16,70 por vaca/dia, R$ 16,70, em média. “Posso te dizer o seguinte: vivo disso, o que me dá uma imensa satisfação, pois amo o que faço. E o resultado financeiro desse negócio cobre todos os custos e ainda me sobra dinheiro.”
Suas metas para os próximos anos é chegar a 100% de vacas A2A2 (hoje, já está em 70%). “E também, mais pra frente, destinar toda a produção de leite, em média 1.250 a 1.300 litros/dia, para minha agroindústria: derivados lácteos com este diferencial e também por sua alta qualidade. E, claro, produzir queijos especiais Ventana”, arremata Carmem.
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