balde branco

Acredito que, antes de adotar quaisquer tecnologias, o produtor deve repensar a forma de ver o seu negócio, seja ele a produção de leite, de hortaliças, ou de soja... Ele precisa se conscientizar de que não há mais condições para fazer as coisas como antes. É preciso fazer diferente, melhor, mais rápido, de forma mais segura e sustentável

ENTREVISTA

Mauro Carrusca

Tecnologias digitais

são ferramentas para pensar e fazer diferente

Mauro Carrusca é engenheiro eletrônico, professor e especialista em Inovação e Empreendedorismo pelo Babson College, dos Estados Unidos. É conselheiro de empresas em Estratégia de Inovação e Visão de Futuro e estrategista em ESG por meio da inovação colaborativa. Foi executivo e consultor da IBM do Vale do Silício, nos EUA, e IBM Brasil. CEO e fundador da KER Innovation. Idealizador da Plataforma KER(*) – modelo de gestão colaborativa. Um dos realizadores do movimento de inovação aberta Ideas for Milk da Embrapa. Palestrante em eventos nacionais e internacionais. Coautor do livro “Pinceladas de Inovação”. (*)Certificado de Propriedade Intelectual pelo Ministério da Cultura em 2014.

João Antônio dos Santos

Balde Branco – Estamos vivenciando um mundo em transformação. Como explicar essa mudança que vem ocorrendo na sociedade e nos negócios, provocada pelas novas tecnologias, sobretudo nos últimos 15 anos?

Mauro Carrusca – Estamos vivendo um momento de rápidas transformações, que vêm afetando a própria dinâmica das nossas vidas. Quando falamos do mundo empresarial, tenho um ponto de vista sobre como as empresas devem se preparar para atender e entender essa nova sociedade em rede e conectada, que aprecia novas experiências e a dinâmica de um mercado marcado pela hipercompetição. A grande inovação que as empresas devem fazer é repensar o próprio modelo de gerir o negócio, passando a ser mais ágeis, flexíveis, inclusivas e colaborativas.

BB –O que é essa revolução digital e como ela afeta os negócios do campo?

MC – Fica mais fácil entender as grandes transformações que estamos vivendo se considerarmos que saímos de um modelo analógico, onde o pensamento é linear, as regras são fixas, os atores são conhecidos e os processos ocorrem em etapas previsíveis, para um modelo digital. No digital, essa lógica é subvertida e entram em cena diversos outros fatores, como tempo de resposta, mobilidade, automatização, precisão, exponencialidade. Com o digital, as possibilidades se ampliam e se multiplicam, processos se tornam mais inteligentes e rápidos, a gestão e o controle são facilitados. Os ganhos são gigantescos, pois os dados passam a ser o coração do negócio, orientando a tomada de decisão, as estratégias e o modelo de operação. Com a ajuda da tecnologia, por exemplo, o produtor pode coordenar todo o rebanho, conhecer melhor o comportamento do animal, fazer a nutrição apropriada e individualizada, saber o nível de estresse, perceber e se preparar para combater doenças e problemas que o animal enfrentará.

BB – Essas tecnologias vieram para ficar, como uma ferramenta valiosa, no caso, para o agro como um todo?

MC – Sempre defendo que as tecnologias não devem ser vistas como protagonistas, mas como nossas aliadas. A internet das coisas (IoT), por exemplo, pode ser aplicada para detectar possíveis problemas na plantação, identificar a área e as plantas afetadas, o tipo de praga e aplicar o tratamento adequado. Com isso, não é mais necessário pulverizar toda a plantação. A atuação é precisa e eficaz. Ajuda a reduzir custos, melhorar a eficiência, preservar o meio ambiente e a saúde de quem lida com produtos químicos. Os sensores, os drones, os tratores são equipamentos que, coordenados por uma tecnologia inteligente, ajudam a resolver problemas, aumentar a produtividade e melhorar a gestão.

BB – Como você afirmou, os dados são muito importantes. Como isso funciona na prática?

MC – Os dados, nesse cenário, passam a ser o combustível para essa máquina funcionar. Por isso, é importante entender quais dados necessitamos, de onde virão e, por meio de ferramentas tecnológicas como nuvem e softwares de análise preditiva, tomar decisões mais assertivas que podem afetar nossa produção, seja no aumento da lucratividade, na busca de soluções alternativas para insumos, em previsões para atuações pontuais ou não. Mais importante ainda é ter a consciência de que, sem “pessoas” preparadas e engajadas, não saberemos usar todo esse conhecimento e os dados para nada servirão.

BB – Vemos que as vantagens são muitas, mas como o pequeno produtor pode fazer uso dessas novas tecnologias?

MC – Há uma grande discussão em torno do acesso às tecnologias e, de fato, é preciso dar prioridade a essa questão, pois as pequenas propriedades representam 77% dos estabelecimentos agropecuários, de acordo com o Censo Agropecuário 2017 (IBGE). Se o nosso agro é tão reconhecido no mundo por suas práticas inovadoras, produtos de padrão internacional e produtividade elevada, é porque produtores audaciosos transformaram suas propriedades em grandes laboratórios de pesquisa. Tecnologias e processos são testados o tempo todo. Se funciona, vamos ampliar e aperfeiçoar. Se não, vamos abortar e partir para outra. Essa mentalidade permitiu que tecnologias como inteligência artificial, internet das coisas e veículos autônomos fossem largamente utilizadas por alguns setores do agro. O desafio é fazer essa mentalidade chegar à agricultura familiar. Acredito que, antes de adotar quaisquer tecnologias, o produtor precisa repensar a forma de ver seu negócio, seja ele a produção de leite, de hortaliças, seja de soja… Ele precisa se conscientizar de que não há mais condições de fazer as coisas como antes. É preciso fazer diferente, melhor, mais rápido, de forma mais segura e sustentável. Tornou-se imprescindível gastar menos água, menos energia e produzir pelo menos o dobro na mesma área!

Com a união, é possível buscar o acesso a pesquisa, inovações, novas tecnologias e metodologias por meio de parcerias com outros produtores, associações, cooperativas, hubs, universidades e aceleradoras, entre outras”

BB – O que fazer para que o produtor familiar tenha acesso e se prepare para usufruir disso?

MC – Como fazer isso acontecer? É aí que entra a palavra-chave, em letras maiúsculas: COLABORAÇÃO. Esse é o foco da minha linha de estudo e atuação. Como sempre digo, a colaboração implica união de cérebros e, no negócio, isso pode ser conseguido por meio de uma gestão mais participativa. Várias cabeças pensam melhor do que uma. A inovação aberta, por exemplo, tem impulsionado diversos projetos vitoriosos, desenvolvendo não apenas propriedades rurais, mas cadeias de valor inteiras. É possível buscar o acesso a pesquisa, inovações, novas tecnologias e metodologias por meio de parcerias com outros produtores, associações, cooperativas, hubs, universidades, aceleradoras, entre outras. Isso ajuda a viabilizar e democratizar a inovação e a tecnologia. Sendo mais enfático ainda, é a união que faz a força, que encurta caminhos, que ajuda um a aprender com os erros e acertos dos outros. E, sim, é preciso adotar uma gestão mais moderna e eficiente. Mas esse é um processo natural. O produtor precisa ter interesse em entender e disciplina para acompanhar e fazer o melhor uso dos dados.

BB – Você falou em colaboração. Vimos o espírito colaborativo evoluir nessa pandemia na qual estamos inseridos. Como você percebeu que a colaboração seria a grande inovação para as empresas modernas?

MC – Para contextualizar melhor, sou engenheiro eletrônico e apaixonado por futuro. Desde o fim dos anos 1970, já estudava a evolução da tecnologia de semicondutores (chips) e que esta evolução levaria o computador para as mãos dos usuários. Minha expectativa, na época, era de que isso ocorreria em 30 anos. Minha passagem pelo Vale do Silício, nos Estados Unidos, onde residi por quatro anos, quando ainda estava na IBM, possibilitou afinar esse estudo e os impactos que essa evolução tecnológica iria provocar em empresas, organizações, governos, instituições e na sociedade. Na minha visão, a revolução digital que estava por vir mudaria muito o comportamento das pessoas, e, portanto, dos negócios. Lembre-se de que quem muda os negócios são as pessoas. Em outras palavras, minha preocupação era com o efeito da tecnologia nas pessoas, principalmente naquelas que não tiveram acesso à informação e também nos jovens que chegariam ao mercado de trabalho em rede e colaborativos. Só para citar um exemplo, veja quantos trabalhadores rurais passaram a ter acesso à informação por intermédio do seu telefone celular! Tudo isso provocaria um choque, pois as empresas são geridas de forma hierárquica, em silos e não inclusivas. A única saída para aproveitar toda essa transformação seria a gestão colaborativa.

BB – Que balanço você faz dessas tecnologias no agro e o que elas trouxeram já de resultados em geral? E especificamente na cadeia produtiva do leite?

MC – Acho que a participação do agro no PIB e em nossa balança comercial diz muito, sobretudo durante a pandemia. Temos sistemas produtivos muito bem consolidados, baseados em pesquisa e adotantes de tecnologias sofisticadas, mecanização de processos críticos, cadeias produtivas fortes e exportadores brasileiros respeitados em várias regiões do planeta. Na minha visão, já avançamos muito e temos muito a avançar. No caso do leite, vemos que a pressão exercida pela indústria de beneficiamento e os frequentes estímulos levados ao produtor pelos órgãos e entidades de fomento, como Embrapa, Senar, Emater e outros, e por fornecedores de insumos, têm provocado mudanças no manejo e nos sistemas de produção, com impactos na produtividade. Acho que é um processo evolutivo que precisa ser acelerado. Corroboro o que ouço de diversos produtores: o pequeno produtor com meia dúzia de vacas leiteiras brigando com a cooperativa e o laticínio por preço precisa mudar porque, infelizmente, não existe mais espaço para ele. Ou o produtor inova e se profissionaliza ou vai ficar pelo caminho.

BB – Qual tem sido o papel desse movimento de startups na cadeia produtiva do leite?

MC – O Brasil é um país vibrante quando se fala em criatividade e empreendedorismo. Vejo uma atividade forte com muitas iniciativas de apoiadores, aceleradores, hubs e eventos. Isso é muito positivo, pois a resposta é clara: startups de sucesso, já vendendo suas soluções para outros países e criando postos de trabalho. Embora ainda não tenhamos unicórnios do agro (empresas cuja avaliação de preço de mercado supera US$ 1 bilhão), creio que reunimos boas condições e talento para avançar. Somente nos primeiros quatro meses de 2021, as startups brasileiras receberam aportes de US$ 2,3 bilhões, cerca de 60% do que foi investido em todo o ano de 2020, segundo a Distrito. A pujança de investimentos tem razão de ser. Como mostra o estudo Radar Agtech Brasil 2020/2021, o segmento de startups brasileiro voltado ao agronegócio não fica a dever nada a nenhum outro e vem sendo responsável por colocar o Brasil como um dos principais protagonistas do agro mundial. Em cinco anos, o número de startups voltadas ao agronegócio cresceu quase 2.000%, ou seja, 20 vezes o número registrado em 2015. Em relação ao mesmo levantamento realizado em 2019, o estudo mostra que o número de startups que apresentaram soluções na categoria conhecida como “dentro da fazenda” teve um aumento de 66%, enquanto as agtechs, com soluções para “depois da fazenda”, cresceram 35%. Mas ainda temos muitos problemas quanto ao incentivo e investimento em inovação.

BB – O Ideas for Milk tem sido grande exemplo dessas inovações, colocando o segmento leite num patamar mais elevado, com vários casos de sucesso, não?

MC – Sim, o projeto Ideas for Milk é um bom exemplo de fomento, no qual somos parceiros da Embrapa, e que foca a busca de soluções para melhorar a eficiência da cadeia do leite, usando tecnologias e novas metodologias inovadoras. O projeto entra este ano na sua 6ª edição. Incorporou outras inovações, como a Caravana 4.0 e o Prêmio Ideas for Milk de Inovação. Também se internacionalizou, com a participação de startups e estudantes da Argentina e de Angola. A iniciativa que, para sua época de lançamento, foi disruptiva, reescreveu a cadeia de valor do agronegócio leite, com projetos de várias startups, sendo que muitas delas já decolaram no mercado. Outro ponto muito positivo para o País é que o Ideas for Milk vem servindo de modelo para outros segmentos do agro e também outras indústrias.

BB –Outra questão muito atual e totalmente necessária é a da sustentabilidade. Que recado gostaria de deixar para os produtores de leite, com base nessa visão de futuro?

MC – Há algum tempo, venho mostrando em palestras, eventos e em encontros com produtores rurais, que a concorrência está mudando drasticamente. E produzir segundo os princípios da sustentabilidade, que é uma exigência do mercado consumidor, é uma necessidade de sobrevivência de seu negócio. E no leite estão aí as boas práticas de produção, citando algumas apenas, como sanidade, bem-estar animal, qualidade e segurança do alimento, ILPF, energia limpa, uso racional dos recursos naturais, entre diversas outras. E tais cuidados na produção do alimento precisam ser comunicados aos consumidores. Veja o que já está ocorrendo no mercado. As âncoras estão deixando de ser qualidade, preço e produção regular. No setor de alimentação, a onda, que começou tímida e em nichos (vegetarianos e veganos), está ganhando força e promete virar um tsunami. Estou falando de alimentos à base de plantas. Acompanho esse mercado há anos e hoje temos carne, ovo, leite, café e diversos outros alimentos totalmente reconfigurados, vindos de combinações genéticas e sintetizadas totalmente diferentes das tradicionais. No caso do leite, a Perfect Day, startup americana, desenvolveu uma alternativa de leite sem proteína animal, com diversas vantagens ao leite animal. O café da Atomo, startup de Seattle, usa 60 tipos de plantas para produzir um café que já abateu a Starbucks em teste cego. O que essas startups prometem são produtos baratos, acessíveis em qualquer lugar do planeta, produzidos de forma sustentável e não invasiva e mirando consumidores que estão abertos a novas ideias e experiências, na verdade que estão dispostos a experimentar o novo. Por isso, meu recado para o produtor de leite é: olhe em volta, olhe longe, apure o foco e olhe de perto outra vez, com a mentalidade dos jovens e crianças. Temos que ter uma mentalidade infinita porque o jogo é infinito.

BB – O produtor rural enfrenta desafios de todas as naturezas para tocar seu negócio. Como a inovação pode ajudar a melhorar o negócio?

MC – Vou tentar resumir tudo isso em uma expressão que venho usando há algum tempo: Momento 4.0. Hoje, as pessoas têm a sensação de que o dia voa, que 24 horas não são mais suficientes, etc. Pois é, bem-vindo ao século 21, onde a revolução digital acelerou as mudanças, nos trazendo ao que chamo de “a era da aceleração”. Aí fica a pergunta – como se adaptar? Como reaprender? Vou te falar o que vejo todos os dias. Acreditar que a inovação é simplesmente o investimento em transformação digital, salas coloridas, design thinking, concurso de ideias e por aí vai… Conheço empresas que convidam startups para darem palestras para os funcionários, tiram foto, colocam em redes sociais e acham que estão fazendo inovação. Inovação exige ter um propósito claro. Inovação depende de gente e gente realmente comprometida e engajada. Aí está a grande transformação nos recursos humanos. Antigamente ficava na roça quem não tinha estudo, hoje só fica na fazenda quem tem estudo. Mudou tudo. Para isso, precisamos repensar todo esse modelo de gerir. É preciso procurar fazer de forma diferente o que se fez ontem, enfim, querer inovar constantemente. Tudo isso tem a ver com o momento 4.0, que vale para o leite, para os serviços, para o minério, para a construção civil, etc. E aí está o Leite 4.0.

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