CRÔNICA

Paulo do Carmo Martins

Economista e pesquisador da Embrapa Gado de Leite

 Vaca boa e capim de qualidade não garantem competitividade no leite, se não houver densidade produtiva regional. E, para ter densidade, é preciso ter organização entre os produtores, pois o custo de captação é menor, os serviços especializados ficam acessíveis e de menor custo, a mão de obra se especializa e pode receber melhores salários.”

Trilogia do leite: a nova economia leiteira

A trajetória da transformação do setor de leite e derivados brasileiro é muito nítida, com saltos a cada década. Até os anos 1970, preponderou a visão eminentemente patrimonialista. A produção crescia apenas pelo aumento do rebanho e pela incorporação de terras, sem mudança de produtividade.

Nos anos 1980, o tabelamento de preços do leite transferiu renda do produtor para o consumidor, desestimulando investimentos em tecnologia. Isso atrasou a modernização, que estava ocorrendo em outros setores, como avicultura, suinocultura e grãos.

Nos anos 1990 o setor foi jogado a uma dolorosa competição aberta com produtos importados a preços subsidiados, sem as devidas salvaguardas compensatórias. Mas isso deu musculatura e a produção passou a crescer via produtividade e não via aumento do patrimônio. Foi o surgimento de uma nova era!

No início deste milênio o setor incorporou a visão da busca da qualidade do leite e criou instrumentos de inteligência de mercado. E, mais recentemente, ficaram visíveis os primeiros resultados das transformações que estavam em curso ao longo das últimas cinco décadas, com o crescimento do volume e a mudança de escala na produção.

Há que se diferenciarem os conceitos de volume e de escala. Manter-se numa mesma base tecnológica, com a incorporação incremental de novas tecnologias, leva a um aumento de volume. Já mudar radicalmente o sistema de produção, em nova base tecnológica, significa mudar a escala produtiva. Portanto, durante os anos 1990, o termo “crescer escala de produção” foi usado indevidamente. Naquela década, a marca foi o crescimento de volume produzido. A mudança de escala, realmente, está ocorrendo agora.

Esse é um dos dois pilares que sustentam a nova economia leiteira: mudança de escala. A chegada do compost barn tem levado a um aprendizado para produtores e técnicos, por meio do caro processo do aprender fazendo. A proliferação do compost mostra a nova maneira de pensar do produtor de leite, focado em empreendedorismo e inovação. A busca pelo novo tem influenciado também os outros sistemas de produção de leite a pasto, semi-intensivo e free stall. O resultado é que os cem maiores produtores brasileiros cresceram a produção em 1,4 milhão de litros/dia entre 2009 e 2021.

A mudança de escala produtiva se soma à especialização regional da produção, consolidando os clusters produtivos. Sim, é verdade que praticamente todos os municípios produzem leite e isso é muito importante sob a ótica econômica e social. Mas destacam-se aquelas regiões em que a produção tem alta densidade por km2.

Vaca boa e capim de qualidade não garantem competitividade no leite, se não houver densidade produtiva regional. E, para ter densidade, é preciso ter organização entre os produtores. Com densidade produtiva, o custo de captação é menor, os serviços especializados ficam acessíveis e de menor custo, a mão de obra se especializa e pode receber melhores salários. O poder de barganha aumenta e o peso político nas decisões da sociedade cresce.

Isso está ocorrendo em várias regiões do Brasil, principalmente entre o noroeste do Rio Grande do Sul e o sudoeste do Paraná, que já tem uma Minas Gerais de leite, e nas regiões do Alto Paranaíba, Triângulo Mineiro e sudoeste de Goiás, além dos Estados de Rondônia e o Sealba, a junção dos Estados de Sergipe, Alagoas e Bahia, além de Pernambuco.

O outro pilar da nova economia leiteira é a conscientização da importância do bem-estar animal. Há pressão do consumidor focada no modo com que os animais são tratados. Mas foi a percepção de ganho econômico que induziu as transformações que estão em curso. Tratar bem bezerras e vacas deixa mais dinheiro no bolso! Isso tem levado produtores a buscar entender o que pode ser feito em termos de manejo, com treinamento de mão de obra somado a incentivos monetários. O propósito é a mudança de atitude, visando desde reduzir taxa de mortalidade de bezerras, até cuidados no período de transição de vacas, aquelas semanas que antecedem e sucedem o parto, em que as vacas merecem atenção diferenciada.

A adoção de práticas relacionadas ao bem-estar animal também está induzindo investimentos em infraestrutura de resfriamento dos animais e de melhores condições físicas no estábulo e no pasto. E vai além, com a introdução de novos conceitos em termos nutricionais, com o uso de ingredientes na ração visando enriquecê-la. Também cresce a importância sanitária, com a adoção de novas práticas. Tudo isso aumenta a produção e melhora a reprodução, reduz o descarte de leite, com impacto imediato no custo de produção.

Mudança de escala e bem-estar animal são os pilares da “nova economia leiteira”. São resultantes de um novo modo de pensar e agir do produtor de leite brasileiro. Há um terceiro pilar em início de construção, que é o ESG. Mas isso é conversa para outro artigo que virá. Já a trilogia termina aqui. Pensada para ser em três artigos (por isso trilogia), completou seis! Convido-o a reler os anteriores.

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