balde branco

CRÔNICA

Paulo do Carmo Martins

Economista e pesquisador da Embrapa Gado de Leite

 Mas a virada do milênio encontrou uma crise instalada no setor, contratada nos anos anteriores. Os preços ao produtor tornaram-se baixos, apesar do vertiginoso e contínuo crescimento do consumo.”

Trilogia do leite: sem fronteiras a nações "amigas"

Os anos noventa do século passado marcaram o surgimento de uma nova era do setor de leite e derivados, com cinco grandes transformações que inseriram o setor na lógica de cadeia produtiva. O Estado deixou de tutelar o setor, com o fim do tabelamento. A granelização reduziu custos de transporte e viabilizou a prática da segunda ordenha. O processo UHT fez o leite fluido deixar de ser perecível, impulsionou a produção longe dos grandes centros e fez dos supermercados o principal canal de comercialização de lácteos. O Mercosul tornou-se parte do mercado interno brasileiro e, finalmente, passa a existir preços diferenciados pagos ao produtor.

Uma sexta transformação veio de fora do setor. Veio da sociedade, que exigiu controle da inflação a qualquer custo. Para tanto, era preciso facilitar as importações, para que os preços da nossa economia de mercados oligopolizados fossem próximos dos preços praticados no restante do mundo. Na ausência de competição, os oligopólios praticam preços elevados e buscam desestimular a entrada de novos concorrentes.

A desburocratização dos procedimentos de importação teve início com o Plano Collor. Adotada de modo intempestivo, fez com que importássemos até o Lada, um rústico carro russo, que não deixou saudade.

A criação do engenhoso Plano Real em julho de 1994 foi resultante da aprendizagem adquirida pelos economistas criadores do Plano Cruzado. Mas inverteu toda a tradição brasileira, ao criar a âncora cambial, ou seja, ao assegurar uma política de câmbio valorizado. Vale lembrar que o Real surgiu cotado a US$ 0,90, como moeda forte e estável e, ao longo de toda a década de noventa, era facilmente encontrado nas casas de câmbio de todo o mundo, do Chile aos shoppings centers americanos.

A questão do câmbio requer uma análise cuidadosa. Até então, a tradição brasileira sempre foi administrar a cotação da moeda nacional de modo a mantê-la desvalorizada. O objetivo era dificultar a demanda ao escasso dólar, para não faltar os bens essenciais adquiridos do exterior. Isso criava uma barreira natural às importações de todo tipo de produto e estimulava a produção interna do necessário ao funcionamento da nossa economia.

Proteção comercial via Câmbio é um poderoso mecanismo de estímulo e foi fundamental para a industrialização do Brasil. Mas, ao se restringir artificialmente a competição interna via política cambial, muitos produtos são obtidos internamente sem que o País seja realmente competitivo.

Se alguém ainda duvida que o leite brasileiro é hábil para se reposicionar quando desafiado, basta olhar o que ocorreu na segunda metade dos anos noventa. Ao contrário da indústria brasileira, que iniciou seu longo e contínuo processo de definhamento, naquela época a produção brasileira respondeu fortemente ao crescimento do consumo, e o setor fez o processo de substituição de importação em plena economia aberta, ou seja, sem subsídio do Estado e com dólar sobrevalorizado. Isso é surreal! Não encontrei nenhum caso semelhante na literatura econômica, analisando diferentes setores no mundo, durante a realização de minha tese de doutorado.

Mas a virada do milênio encontrou uma crise instalada no setor, contratada nos anos anteriores. Os preços ao produtor tornaram-se baixos, apesar do vertiginoso e contínuo crescimento do consumo. Três fatores vão se juntar para deprimir o preço pago ao produtor. O primeiro foi o estímulo que os produtores da Argentina e Uruguai tiveram internamente para aumentar a produção visando o mercado brasileiro, sem imposto de importação, por conta do Mercosul.

O segundo fator a deprimir preço ao produtor foi a entrada de produtos lácteos importados da Europa a preços subsidiados na origem. Vale lembrar que lá vigia a PAC – Política Agrícola Comum, que estabelecia explicitamente que o seu propósito no leite era assegurar preços ao produtor num nível que garantisse padrão de vida razoável. Portanto, praticavam internamente preços acima do mercado internacional e proibiam importações. Mas exportavam a preços subsidiados, abaixo dos da Nova Zelândia.

O terceiro fator foi o uso sistemático de fraude no produto que chegava ao mercado, com o soro sendo adicionado ao leite. Essa oferta extra, oriunda de fraude, dado o volume, deprimia preços do varejo para a produção. Além desta fraude interna, havia a fraude externa, ou seja, a entrada de produtos europeus próximos da data de validade, triangulados, que chegavam no Brasil como se fossem produzidos na Argentina.

Portanto, saímos de um extremo e caímos em outro. Deixamos um período em que o setor era engessado pelo Estado e caímos numa economia com tênues controles. Ficamos expostos ao mundo de preços artificiais e sem políticas públicas específicas. Ao contrário do mundo, leite deixou de ser assunto de Estado e os preços ao produtor desabaram nos dois primeiros anos do milênio. Suas consequências, trataremos no próximo artigo, no mês que vem.

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